Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam a declaração do presidente russo, Vladimir Putin, sobre a criação de um Parlamento do BRICS, classificam a medida como inevitável no processo de institucionalização do grupo e destacam a importância do Brasil na defesa do multilateralismo.
Fonte: Sputnik
Vladimir Putin discursou nesta quinta-feira (11), no 10º Fórum Parlamentar do BRICS, um evento que ocorre na cidade russa de São Petersburgo entre os dias 11 e 12 de julho.
No discurso, Putin admitiu a possibilidade de criar futuramente uma estrutura parlamentar do BRICS e destacou que se os países agirem em conjunto, será possível reforçar a influência construtiva do BRICS e tornar o mundo mais seguro.
“O principal é que essas reuniões já se estabeleceram como um exemplo de confiança, apoio mútuo e diálogo livre, fortalecendo a autoridade da própria organização e sua influência no mundo”, disse o presidente russo.
À Sputnik Brasil, Williams Gonçalves, doutor em sociologia e professor titular de relações internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), afirma que “a pressão que o BRICS faz no sentido da multipolaridade está perfeitamente de acordo com a tradição da política externa do Brasil”.
“A política externa brasileira, ao longo do tempo, salvo períodos curtos de exceção, teve como uma de suas dimensões a luta pela multipolaridade. No final da década de 60, por exemplo, o embaixador Araújo Castro nos falava da necessidade de descongelamento do poder mundial. Portanto, o Brasil participou do Grupo dos 77, que criou a UNCTAD [Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento].”
Gonçalves enfatiza que fortalecer a multipolaridade no BRICS, como defende Putin, está alinhada à tradição da diplomacia brasileira e tem um papel fundamental na luta pela multilateralização das discussões internacionais.
“Um grupo forte, como é o BRICS, que a cada dia atrai o maior número de Estados interessados em se associar, tem uma força muito grande, significativa. Eu diria que, com o passar do tempo, o BRICS vai se tornar uma força irreprimível“, destaca o especialista.
Ele acrescenta que “não é possível aceitar a ideia de que existe um Estado dono do mundo, um Estado policial do mundo ou uma coligação de Estados-xerifes do mundo que impõem a sua ordem” e que, embora a multipolaridade não signifique a paz mundial, é um importante reforço da diplomacia.
“O fim do Estado-xerife, a ultrapassagem dessa fase de Estado policial, significa o fortalecimento do diálogo, da necessidade do diálogo para resolver as questões comuns a todos as nações. Portanto, a multipolaridade favorece isso. A dispersão do poder, a desconcentração do poder favorece isso, e o BRICS é um instrumento importante desse processo.”
José Renato Ferraz da Silveira, professor de relações internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), afirma que “a política externa brasileira compreende que os ganhos relativos no desenvolvimento dessas parcerias estratégicas, na consolidação do BRICS, é mais substantivo do que optar por outros caminhos já trilhados no passado”.
“O Brasil escolhe trilhar o novo, o desejo e a expectativa de mudança da governança global a partir da alteração da tradicional arquitetura institucional do pós-Segunda Guerra Mundial, a manutenção injustificada dos atuais cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU e introduzir alternativas ao FMI [Fundo Monetário Internacional], ao Banco Mundial, e ao BID [Banco Interamericano do Desenvolvimento] para o fomento às economias emergentes […]. Brasil, China, Rússia, Índia e África do Sul são grandes economias emergentes; com mais de 42% da população mundial, 30% do território do planeta, 23% do PIB [produto interno bruto] global e 18% do comércio internacional.”
Ele lembra a obra “Around the Cragged Hill“, de George F. Kennan, que aponta que apenas cinco países do mundo cabem no seleto grupo de nações com “tamanho desmesurado, ou seja, países com território continental de milhões de quilômetros quadrados, mas também com população gigantesca”: EUA, Rússia, China, Índia e Brasil.
“Perceba que, excluindo os Estados Unidos, todos os demais países [Rússia, China, Índia e Brasil] fazem parte do BRICS. O BRICS representa um ‘deslocamento das placas tectônicas’ do ordenamento internacional.”
Como o BRICS pode contribuir para a segurança global?
No discurso, Putin destacou a importância dos países do BRICS trabalharem em conjunto para reforçar a influência construtiva do grupo e tornar o mundo mais seguro.
Questionado sobre como isso é possível, uma vez que o agrupamento não é uma aliança militar como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), Gonçalves diz que a multipolaridade defendida pelo grupo leva à democratização das relações internacionais, “o que significa a intensificação do diálogo diplomático e a superação da solução dos problemas internacionais pela força das armas”.
“Isso não acontecerá da noite para o dia, evidentemente, mas na medida em que o BRICS cresce, se fortalece, e os seus princípios se enraízam. Aqueles que apelam para o recurso às armas, que fazem provocação com as armas, ao longo do tempo se sentirão inibidos e sozinhos. Portanto, o BRICS tem um papel progressista muito importante nesse sentido.”
Silveira lembra que a reforma nas atuais instituições globais é uma das principais demandas do BRICS, e que essa demanda é uma das formas do grupo de contribuir para a segurança global.
“Há uma necessidade premente de alteração e modificação da arquitetura institucional global gestado do mundo pós-Segunda Guerra Mundial que se mantém inalterada por interesses dos EUA. E não só dos EUA. A necessária reforma do Conselho de Segurança da ONU [Organização das Nações Unidas] é o ponto fulcral para a segurança global. É injustificável a manutenção dos cinco membros permanentes e com poder de veto. Os problemas atuais de paz e guerra no mundo exigem atualização dos mecanismos jurídicos e institucionais da ONU. Reitero que muitas decisões deveriam primar pelos vetores da criatividade e do humanismo. O caso da Palestina é emblemático nesse sentido.”
Como a criação de um parlamento do BRICS contribui para o grupo?
Silveira afirma que “à medida que há um aprofundamento nas relações entre os membros envolvidos — no caso, o BRICS —, o processo de institucionalização no grupo é inevitável”.
“O reforço das intenções, o aumento das reuniões, cerca de 150 reuniões anuais, e as expectativas criadas por essas parcerias estratégicas, principalmente em torno de três pilares principais — cooperação em política e segurança, cooperação financeira e econômica, e cooperação cultural e pessoal —, catalisarão o surgimento de um provável parlamento e de outros órgãos”, afirma.
Por sua vez, Gonçalves diz que “Putin tem razão ao levantar a questão da participação dos parlamentos no processo de entendimento dos países do BRICS“. Isso porque, segundo o especialista, “até agora, o grupo do BRICS é restrito à ação governamental, é restrito à ação do poder executivo”.
“O ingresso do parlamento significa a popularização do BRICS. Significa que as pessoas que elegem os seus deputados, os cidadãos que elegem seus deputados, serão informados — teoricamente, pelo menos — por seus deputados a respeito do que é o BRICS. Isso é importante aqui no Brasil porque poucos são aqueles que sabem realmente o que é o BRICS, excluindo naturalmente os acadêmicos e outros setores que sabem o que é o BRICS por dever de ofício.
Mas, de uma maneira geral, a sociedade ignora o BRICS [e as grandes mudanças que estão ocorrendo]. E a participação dos parlamentos vai fazer com que o conhecimento do BRICS se alastre pela sociedade e seus princípios se enraízem.”