Entre as grandes figuras da Idade Média há poucas cujo estudo seja mais apropriado do que a de S. Bernardo para dissipar certos preconceitos caros ao espírito moderno. Efetivamente, haverá algo mais desconcertante, para esse espírito, do que ver um homem puro contemplativo, que sempre quis ser assim e continuar a sê-lo, chamado a desempenhar um papel preponderante na condução dos negócios da Igreja e do Estado, e triunfando muitas vezes onde tinha fracassado toda a prudência dos políticos e dos diplomatas de profissão?
SÃO BERNARDO de Clairvaux (Claraval) e os Templários
Haverá algo mais surpreendente, e mesmo mais paradoxal, de acordo com a maneira vulgar de julgar as coisas, do que um místico que só sente desdém por aquilo que ele chama “as argúcias de Platão e sutilezas de Aristóteles” e, que, todavia, vence sem dificuldade os mais sutis dialéticos eruditos do seu tempo?
Toda a vida de S. Bernardo poderia parecer destinada a mostrar, através de um exemplo fulgurante, que existem, para resolver os problemas de ordem intelectual e mesmo de ordem prática, meios totalmente diferentes daqueles que se tornaram hábito, desde há muito tempo, considerar como os únicos eficazes, sem dúvida porque eles são os únicos ao alcance de uma sabedoria puramente humana, que nem sequer é a sombra da verdadeira sabedoria.
Essa vida aparece, assim, de qualquer modo, como uma refutação antecipada destes erros, aparentemente opostos mas realmente solidários, que são o Nacionalismo e o Pragmatismo; e, ao mesmo tempo, confunde e derruba, para quem as examina imparcialmente, todas as idéias preconcebidas dos historiadores “eruditos cientistas” que consideram, com Renan, que “a negação do sobrenatural constitui a própria essência da crítica”, o que nós admitimos, aliás, de bom grado, mas porque vemos nessa incompatibilidade o contrário do que eles vêem nela: a condenação da própria “crítica”, e não a do sobrenatural. Na verdade, que lições poderiam, na nossa época, ser mais proveitosas do que essas?
Bernardo nasceu em 1090, em Fontaines-lès-Dijon; os seus pais pertenciam à alta nobreza de Borgonha, e se apontamos esse fato é porque nos parece que alguns traços da sua vida e da sua doutrina, de que falaremos seguidamente, podem, até certo ponto, estar ligados a essa origem. Não queremos, somente, dizer que é possível explicar desse modo o ardor por vezes belicoso do seu zelo ou a violência que ele pôs muitas vezes nas polêmicas para que foi arrastado, e que era, aliás, meramente superficial, porque a bondade e a doçura constituíam, incontestavelmente, o fundo do seu caráter. Pretendemos, sobretudo, aludir às suas relações com as instituições e o ideal da Cavalaria, aos quais, de resto, se deve sempre dar grande importância se se quiser compreender os acontecimentos e o próprio espírito da Idade Média.
Foi por volta dos seus vinte anos que Bernardo concebeu o projeto de se retirar do mundo; e em pouco tempo conseguiu fazer com que a sua visão fosse compartilhada por todos os seus irmãos, alguns dos seus próximos e um certo número dos seus amigos. Neste primeiro apostolado, a sua força de persuasão era tal, apesar da sua juventude, que brevemente “ele se tornou, diz o seu biógrafo, o terror das mães e das esposas; os amigos temiam vê-lo abordar os seus amigos”. Há já aí qualquer coisa de extraordinário, e seria seguramente insuficiente invocar o poder do “gênio”, no sentido profano desta palavra, para explicar uma influência semelhante.
Não será melhor reconhecer aí a ação da graça divina que, penetrando de qualquer modo toda a pessoa do apóstolo e irradiando exteriormente pela sua superabundância, se comunicava através dele como por um canal, de acordo com a comparação que ele próprio utilizará, mais tarde, aplicando-a à Santa Virgem (a energia feminina criativa, da Deusa, a contraparte da energia masculina de Deus), e que se pode também, restringindo mais ou menos o seu alcance, aplicar a todos os santos?
É portanto, acompanhado por uma trintena de jovens que Bernardo em 1112 entrou no Mosteiro de Cister, escolhido por ele em virtude do rigor com que aí era observada a regra, rigor contrastante com o desleixo que se tinha introduzido em todos os outros ramos da Ordem beneditina. Três anos mais tarde, os seus superiores não hesitavam em lhe confiar, apesar da sua inexperiência e da saúde periclitante, a direção de doze religiosos que iam fundar uma nova abadia, a de Claraval (Clairvaux), que ele deveria governar até à sua morte, repelindo sempre as honras e as dignidades que lhe ofereceriam tantas vezes, ao longo da sua carreira.
O renome de Claraval não tardou a estender-se até longe e o desenvolvimento que essa abadia adquiriu em breve foi verdadeiramente prodigioso: quando morreu o seu fundador, ela abrigava, diz-se, cerca de setecentos monges e tinha dado origem a mais de sessenta novos mosteiros.
O cuidado que Bernardo trouxe à administração de Claraval, regulando ele próprio até aos mais minuciosos pormenores da vida quotidiana, a parte que ele teve na direção da Ordem cisterciense, como chefe de uma das suas primeiras abadias, a habilidade e o êxito das suas intervenções para aplanar as dificuldades que surgiam freqüentemente com ordens rivais, tudo isso basta já para provar que aquilo que se designa por sentido prático pode muito bem aliar-se, por vezes, à mais alta espiritualidade.
Havia aí mais do que suficiente para absorver toda a atividade de um homem vulgar; e, no entanto, Bernardo em breve veria abrir-se diante de si um outro campo de ação, aliás bem contra a sua vontade, porque ele temia, mais do que qualquer outra coisa ser obrigado a sair do seu claustro para se misturar com os assuntos do mundo exterior, do qual ele tinha julgado poder isolar-se para sempre, a fim de se poder entregar inteiramente à ascese e à contemplação, sem que qualquer coisa o viesse distrair do que era, aos seus olhos, segundo as palavras evangélicas, “a única coisa necessária”.
Nisso ele tinha-se enganado redondamente; mas todas as “distrações” no sentido etimológico, às quais ele não pôde escapar e de que chegou a lamentar-se com alguma amargura, não o impediram de alcançar os pontos mais altos da vida mística.
Isso é notável; e o que não o é menos é que, apesar de toda a sua humildade e de todos os esforços que empreendeu para ficar na sombra, fez-se apelo à sua colaboração em todos os assuntos importantes da época, e que, embora ele nada fosse aos olhos do mundo, todos, incluindo os mais altos dignitários civis e eclesiásticos, se inclinaram sempre perante a sua autoridade espiritual — e nós não sabemos se esse fato é mais um louvor do santo ou da época em que viveu.
Que contraste entre o nosso tempo atual e aquele em que um simples monge podia, pela simples irradiação das suas virtudes eminentes, tornar-se de certo modo o centro da Europa e da Cristandade, o árbitro incontestado de todos os conflitos em que o interesse histórico estava em jogo, tanto na ordem política como na ordem religiosa, o juiz dos mestres mais reputados da filosofia e da teologia, o restaurador da unidade da Igreja, o mediador entre o Papado e o Império, e ver, por fim, exércitos de muitas centenas de milhar de homens reunirem-se com a sua pregação.
Bernardo tinha começado em boa hora a denunciar o luxo no qual vivia então a maior parte dos membros do clero secular e mesmo os monges de certas abadias; as suas prédicas tinham provocado conversões retumbantes, entre as quais a de Suger, o ilustre abade de Saint-Denis, que, sem usar ainda o título de primeiro-ministro do rei de França, ocupava já essas funções.
Foi essa conversão que tornou conhecido na corte o nome do abade de Claraval, considerado aí, segundo parece, com um respeito misturado com o temor, porque viam nele o adversário irredutível de todos os abusos e de todas as injustiças; e, efetivamente, em breve o viram intervir nos conflitos que tinham rebentado entre Luís o Gordo e diversos bispos, protestando em voz alta contra as usurpações do poder civil sobre os direitos da Igreja.
Para dizer a verdade, não se tratava ainda senão de assuntos meramente locais, interessando somente este mosteiro ou aquela diocese; mas em 1130 ocorreram acontecimentos de uma outra gravidade, que puseram em perigo toda a Igreja dividida pelo cisma do anti-papa Anacleto II, e foi nessa ocasião que o renome de Bernardo se espalhou por toda a Cristandade. Não temos aqui necessidade de voltar a traçar a história do cisma em todos os seus pormenores: os cardeais, divididos em duas facções rivais, tinham eleito sucessivamente Inocêncio II e Anacleto II; o primeiro, obrigado a fugir de Roma, não desesperou dos seus direitos e fez deles apelo à Igreja universal.
A França foi a primeira a responder; no concílio convocado pelo rei em Etampes, Bernardo apareceu, diz o seu biógrafo, “como um verdadeiro enviado de Deus” no meio dos bispos e dos senhores reunidos; todos seguiram o seu conselho acerca da questão submetida ao seu exame e reconheceram a validade da eleição de Inocêncio II. Este encontrava-se, então, em solo francês e foi na abadia de Cluny que Suger lhe anunciou a decisão do concílio; percorreu depois as principais dioceses e foi por toda a parte acolhido com entusiasmo; este movimento iria arrastar consigo a adesão de quase toda a Cristandade.
O abade de Claraval dirigiu-se ao rei de Inglaterra e triunfou prontamente das suas hesitações; talvez tenha também tido uma parte pelo menos indireta no reconhecimento de Inocêncio II por parte do rei Lotário e do clero alemão. Foi seguidamente à Aquitânia para combater a influência do bispo Gérard d’Angoulême, partidário de Anacleto II; mas somente no decorrer de uma segunda viagem a esta região, em 1135, é que conseguiu destruir o cisma, operando a conversão do conde de Poitiers.
Entretanto, teve que ir a Itália, chamado por Inocêncio II que tinha regressado com o apoio de Lotário, mas que fora detido por dificuldades imprevistas, devidas à hostilidade de Pisa e de Genova; era necessário encontrar um entendimento entre as duas cidades rivais e fazê-las aceitá-lo; Bernardo foi encarregado dessa difícil missão e levou-a a cabo com o mais extraordinário êxito.
Inocêncio pôde finalmente entrar em Roma, mas Anacleto permaneceu entrincheirado em S. Pedro, que foi impossível tomar; Lotário, coroado imperador em São João de Latrão, em breve se retirou com o seu exército; após a sua partida, o anti-papa retomou a ofensiva e o pontífice legítimo teve que fugir novamente e refugiar-se em Pisa.
O abade de Claraval, que tinha regressado ao seu claustro, recebeu consternado estas notícias; pouco depois, chegou até ele notícia da atividade desenvolvida por Rogério, rei da Sicília, para conquistar toda a Itália para a causa de Anacleto, ao mesmo tempo que para se assegurar da sua própria supremacia. Bernardo escreveu imediatamente aos habitantes de Pisa e de Genova para os encorajar a permanecerem fiéis a Inocêncio; mas essa fidelidade constituía fraco apoio e, para conquistar Roma, só da Alemanha é que se podia esperar socorro eficaz.
Infelizmente, o Império estava sujeito a divisão e Lotário não podia voltar a Itália sem ter assegurado a paz no seu próprio país. Bernardo partiu para a Alemanha e trabalhou na reconciliação dos Hohenstaufen com o imperador; e ainda nesse caso os seus esforços foram coroados de êxito; consagrou o feliz desfecho na dieta de Bamberg, que deixou, seguidamente, para se dirigir ao concílio que Inocêncio II tinha convocado em Pisa.
Nessa ocasião, teve que censurar Luís o Gordo, que se tinha oposto à partida dos bispos do seu reino; a proibição foi levantada e os principais membros do clero francês puderam responder ao apelo do chefe da Igreja. Bernardo foi a alma do concílio; no intervalo das sessões, conta um historiador dessa época, a sua porta era assediada por aqueles que tinham qualquer assunto grave a tratar, como se esse humilde monge tivesse o poder de resolver a seu grado todas as questões eclesiásticas.
Enviado, em seguida, a Milão para fazer regressar essa cidade a Inocêncio II e a Lotário, viu-se aí aclamado pelo clero e pelos fiéis que, numa manifestação espontânea de entusiasmo, quiseram fazê-lo seu arcebispo; e ele teve a maior dificuldade em subtrair-se a essa honra. Só aspirava a regressar ao seu mosteiro; e, efetivamente, voltou aí, mas não por muito tempo.
Desde o começo do ano de 1136, Bernardo teve que abandonar ainda uma vez a sua solidão para vir, de acordo com os desejos do Papa, reunir-se em Itália ao exército alemão, comandado pelo duque Henrique da Baviera, genro do imperador. Tinha havido um desentendimento entre este e Inocêncio II: Henrique, pouco cioso dos direitos da Igreja, mostrava em todas as circunstâncias que só se preocupava com os interesses do Estado. Desse modo, o abade de Claraval teve muito que fazer para restabelecer a concórdia entre os dois poderes e conciliar as suas pretensões rivais, nomeadamente em certas questões de investiduras, em que parece ter desempenhado constantemente o papel de moderador.
Lotário, que tinha tomado o comando do exército, submeteu toda a Itália meridional; mas cometeu o erro de repelir as propostas de paz do rei da Sicília, que não tardou em vingar-se, pondo tudo a ferro e fogo. Bernardo, então, não hesitou em apresentar-se no campo de Rogério, que acolheu muito mal as suas palavras de paz, e a quem ele predisse uma derrota que efetivamente se produziu; depois, seguindo-o, juntou-se a ele em Salerno e esforçou-se por afastá-lo do cisma em que a ambição o tinha lançado. Rogério consentiu em ouvir os partidários de Inocêncio e de Anacleto, mas, sempre parecendo conduzir o inquérito com imparcialidade, procurava apenas ganhar tempo e recusou-se a tomar uma decisão; pelo menos, este debate teve como resultado levar à conversão um dos principais autores do cisma, o cardeal Pedro de Pisa, que Bernardo levou consigo até junto de Inocêncio II.
Essa conversão causou um golpe terrível na causa do anti-Papa; Bernardo soube aproveitar-se desse fato, e na própria cidade de Roma, graças às suas palavras ardentes e convictas, em poucos dias conseguiu afastar do partido de Anacleto a maior parte dos dissidentes. Isso se passou em 1137, perto da época das festas de Natal; um mês depois, Anacleto morria subitamente. Alguns dos cardeais mais comprometidos no Cisma elegeram novo anti-Papa com o nome de Víctor IV; mas a sua resistência não podia durar muito tempo e, no dia da oitava de Pentecostes, todos apresentaram a sua submissão; na semana seguinte, o abade de Claraval retomava o caminho de regresso ao seu mosteiro.
Este resumo muito rápido basta-nos para ficarmos com uma idéia do que se poderia chamar a atividade política de São Bernardo, que, aliás, não parou aí: de 1140 a 1144 protestou contra a intromissão abusiva do rei (França) Luís o Novo nas eleições episcopais; seguidamente, interveio num grave conflito entre este mesmo rei e o conde Thibault de Champagne; mas seria fastidioso alargarmo-nos na citação destes acontecimentos. Em resumo, pode-se dizer que a conduta de Bernardo foi sempre determinada pelas mesmas intenções: defender o direito, combater a injustiça, e, talvez, acima de tudo, manter a unidade do mundo católico cristão.
Foi essa mesma preocupação constante de unidade que o animou na sua luta contra o cisma; foi ainda ela que o fez empreender, em 1145, uma viagem ao Languedoc, no sudoeste da França para fazer voltar à Igreja os heréticos neo-maniqueus (Os Cátaros de Albi e cidades vizinhas no Languedoc) que começavam a espalhar-se por essa região. Parece que ele teve sempre presente no pensamento estas palavras do Evangelho: “Que todos sejam um, como meu Pai e eu somos um”.
Todavia, o abade de Claraval não tinha só que lutar no domínio político, mas também no domínio intelectual, em que os seus triunfos não foram menos fulgurantes, visto que foram marcados pela condenação de dois eminentes adversários; Abelardo e Gilbert de la Porrée. O primeiro tinha adquirido a reputação de ser um dos mais hábeis dialéticos, graças aos seus ensinamentos e aos seus escritos; chegava mesmo a abusar da dialética, porque em vez de ver o que ela é na realidade, um simples meio para chegar ao conhecimento da verdade, encarava-a quase como um fim em si mesmo, o que resultava, naturalmente, numa espécie de verbalismo (e verborragia).
Parece também que havia nele, em la Porrée, seja no método, seja no próprio fundo dos ideais, uma procura de originalidade que o aproxima um pouco dos filósofos modernos; e numa época em que o individualismo era quase desconhecido, este defeito não podia arriscar-se a passar por uma qualidade, como acontece nos nossos dias.
Assim, em breve, alguns se mostraram inquietos com estas novidades que tendiam a estabelecer uma verdadeira confusão entre o domínio da razão e o da fé; não que Abelardo fosse propriamente um racionalista, como por vezes se afirmou, porque não houve racionalistas antes de Descartes; mas não soube distinguir entre o que era do domínio da razão e o que lhe é superior, entre a Filosofia profana (e mundana) e a sabedoria sagrada, entre o saber puramente humano e o conhecimento transcendente — e essa foi a raiz de todos os seus erros. Não ía ele ao ponto de sustentar que os filósofos e os dialéticos gozam habitualmente de uma inspiração que seria comparável à inspiração sobrenatural dos profetas?
Compreende-se facilmente por que São Bernardo, quando foi chamada a sua atenção para teorias semelhantes, se tenha levantado contra elas em força e mesmo com um certo arrebatamento, e também que tenha censurado amargamente ao seu autor ter ensinado que a fé não era mais do que uma simples opinião. A controvérsia entre estes dois homens tão diferentes, começada em encontros particulares, teve em breve imenso eco nas escolas e mosteiros; Abelardo, confiando na sua habilidade para manejar o raciocínio, pediu ao arcebispo de Sens que reunisse um concílio, perante o qual ele se justificaria publicamente, porque pensava poder conduzir a discussão de tal modo que confundisse facilmente o seu adversário.
Mas as coisas passaram-se de outra maneira: o abade de Claraval, efetivamente, concebia o concílio como um tribunal diante do qual o teólogo suspeito iria comparecer como acusado; numa sessão preparatória, apresentou as obras de Abelardo e as suas afirmações mais temerárias, de que provou a respectiva heterodoxia; no dia seguinte, já com o autor presente, e depois de ter enunciado essas afirmações, intimou-o a retratar-se ou a justificá-la.
Abelardo, pressentindo logo uma condenação, não esperou o juízo do concílio e declarou que apelaria imediatamente para o tribunal de Roma; nem por isso o processo deixou de seguir o seu curso normal e, assim que a condenação foi anunciada, Bernardo escreveu a Inocêncio II e aos cardeais cartas de uma eloqüência premente, de tal modo que, seis semanas mais tarde, a sentença era confirmada em Roma. Abelardo tinha apenas que se submeter; refugiou-se em Cluny, junto de Pedro o Venerável, que conseguiu marcar um encontro entre ele e o abade de Claraval, conseguindo reconciliá-los.
O concílio de Sens decorreu em 1140; em 1147, Bernardo obteve igualmente do concílio de Reims a condenação dos erros de Gilbert de la Porrée, bispo de Poitiers, respeitantes ao mistério da Trindade; estes erros provinham de que o seu autor aplicava a Deus a distinção real entre essência e existência, a qual só é aplicável aos seres criados. Gilbert, aliás, retratou-se sem dificuldades; assim, foi simplesmente proibido de ler ou de transcrever a sua obra antes de ela ser corrigida; a sua autoridade, à parte os pontos particulares que estavam em causa, não foi atingida, e a sua doutrina, continuou a ter grande crédito nas escolas durante a Idade Média.
Dois anos antes deste último caso, o abade de Claraval tivera a alegria de ver subir ao trono pontifical um dos seus antigos monges, Bernardo de Pisa, que tomou o nome de Eugênio III, e que continuou sempre a manter com ele as mais afetuosas relações; e é o novo Papa que, logo no começo do seu reinado, o encarrega de pregar a segunda cruzada. Até aí, a Terra Santa não ocupava, pelo menos aparentemente, senão um lugar menor nas preocupações de São Bernardo; seria, no entanto, um erro julgar que ele era inteiramente estranho ao que se passava aí, e a prova está num fato acerca do qual normalmente se insiste muito menos do que conviria.
Falamos da sua participação na criação e na constituição da Ordem dos Cavaleiros do Templo (os Templários), a primeira das Ordens militares pela data e pela importância, e que iria servir de modelo a todas as outras. Foi em 1128, cerca de dez anos após a sua fundação, que esta Ordem recebeu a sua regra do concílio de Troyes e foi Bernardo que, na sua qualidade de secretário do concílio, foi encarregado de redigi-la, ou pelo menos de traçar as suas linhas gerais, porque parece que somente mais tarde foi chamado a completá-la e que só terminou a sua redação definitiva em 1131.
Comentou seguidamente essa regra no tratado “De laude novae militiae”, em que expôs em termos de magnífica eloqüência a missão e o ideal da cavalaria cristã, do que ele chamava a “milícia de Deus”. Estas relações do abade de Claraval com a Ordem do Templo (Os Cavaleiros Templários), que os historiadores modernos encaram como um episódio bastante secundário da sua vida tinham certamente outra importância aos olhos dos homens da Idade Média, e nós mostramos já (em O esoterismo de Dante) que elas constituem sem dúvida a razão pela qual Dante deveria escolher São Bernardo para guiá-lo nos últimos círculos do Paraíso.
Desde 1145 que Luís VII tinha formado o projeto de socorrer os principados latinos do Oriente, ameaçados pelo emir de Alepo (na Síria); mas a oposição dos seus conselheiros tinha-o obrigado a adiar a sua realização e a decisão definitiva tinha sido remetida para uma assembléia plenária que deveria realizar-se em Vezelay, durante as festas da Páscoa do ano seguinte. Eugênio III, retido em Itália por uma revolução suscitada em Roma por Arnaldo de Bréscia, encarregou o abade de Claraval de substituí-lo nessa assembléia; Bernardo, depois de ler a bula que convidava a França a juntar-se à cruzada, pronunciou um discurso que foi, a julgar pelo efeito produzido, a maior ação oratória da sua vida: todos os assistentes se precipitaram a receber a cruz das suas mãos.
Encorajado por este sucesso, Bernardo percorreu as cidades e as províncias, pregando por toda a parte a cruzada com zelo infatigável; onde não podia ir pessoalmente enviava cartas não menos eloqüentes do que os seus discursos. Passou seguidamente à Alemanha, onde a sua pregação teve os mesmos resultados que em França; o imperador Conrado, depois de resistir algum tempo, teve que ceder à sua influência e integrar-se na cruzada. A meio do ano de 1147, os exércitos francês e alemão puseram-se em marcha para essa grande expedição que, apesar da sua aparência formidável, acabaria por redundar num desastre.
As causas deste fracasso foram múltiplas: as principais parecem ter sido a traição dos gregos e a falta de entendimento entre os diversos chefes da cruzada; mas alguns procuraram injustamente lançar a responsabilidade sobre o abade de Claraval. Este foi obrigado a escrever uma verdadeira apologia da sua própria conduta, que era ao mesmo tempo uma justificação da ação da Providência, mostrando que as desgraças ocorridas eram imputáveis apenas às faltas dos cristãos, e que, desse modo, “as promessas de Deus permaneciam intactas, porque elas não prescreviam contra os direitos da justiça”; essa apologia está contida no livro “De Consideratione”, dirigido a Eugénio III, livro que é como que o testamento de São Bernardo e que contem, nomeadamente, a sua visão acerca dos deveres do Papado. Aliás, nem todos se deixaram desencorajar, e Suger concebeu, em breve, o projeto de uma nova cruzada, de que o abade de Claraval deveria ser o chefe; mas a morte do grande ministro de Luís VII suspendeu a execução desse projeto. O próprio São Bernardo morreu pouco depois, em 1153, e as suas últimas cartas testemunham que ele se preocupou até ao fim com a libertação da Terra Santa.
Se o objetivo imediato da cruzada não tinha sido alcançado deveria, por isso, dizer-se que essa expedição tinha sido completamente inútil e que os esforços de São Bernardo tinham redundado em pura perda? Não o cremos, apesar do que poderiam pensar os historiadores que se agarram apenas às aparências exteriores, porque havia nestes grandes momentos da Idade Média, que tinham simultaneamente caráter político e religioso, razões mais profundas, das quais uma, a única que queremos aqui indicar, era a de manter na Cristandade uma viva consciência da sua unidade. A Cristandade era idêntica à civilização ocidental, baseada então em bases essencialmente tradicionais, como toda a civilização normal, e que iria alcançar o seu apogeu no século XIII; a perda deste caráter tradicional devia necessariamente seguir-se à ruptura da própria unidade da Cristandade.
Essa ruptura, que foi efetuada no domínio religioso pela Reforma Protestante, ocorreu no domínio político pela instauração das nacionalidades, precedida pela destruição do regime feudal; e pode-se dizer, segundo este último ponto de vista, que aquele que desferiu os primeiros golpes no grandioso edifício da Cristandade medieval foi Filipe o Belo, rei da França, o mesmo que, por uma coincidência que não tem certamente nada de fortuito, destruiu a Ordem do Templo na Europa, atacando por aí, diretamente, a própria obra de São Bernardo.
No decurso de todas as suas viagens, São Bernardo apoiou constantemente a sua pregação em numerosas curas milagrosas, que aconteciam e eram para as multidões como que sinais visíveis da sua missão; estes fatos foram contados por testemunhas oculares, mas ele referiu-se muito pouco a eles e contra sua vontade. Talvez essa reserva lhe fosse imposta pela sua extrema modéstia; mas também certamente atribuía a esses milagres apenas uma importância secundária, considerando-os somente como uma concessão divina à fraqueza da fé na maior parte dos homens, de acordo com as palavras de Cristo: “Felizes aqueles que acreditam sem terem visto”.
Essa atitude estaria de acordo com o desdém que ele manifestava, em geral, por todos os meios exteriores e sensíveis, tais como a pompa das cerimônias e a ornamentação das igrejas; foi mesmo possível censurarem-no, com alguma aparência de verdade, por ter manifestado desprezo pela arte religiosa. Os que formulam esta crítica esquecem, todavia, uma distinção necessária, a que ele próprio estabelece entre o que chama arquitetura episcopal e arquitetura monástica: só esta última deve ter a austeridade que ele preconiza; somente aos religiosos e aos que seguem o caminho da perfeição ele proíbe o “culto dos ídolos”, ou seja, das formas, acerca das quais, pelo contrário, ele proclama a sua utilidade como meio de educação para os simples e os imperfeitos.
Se ele protestou contra os abusos das figuras desprovidas de significado e tendo apenas valor ornamental, não podia querer, como falsamente se afirmou, abolir o simbolismo da arte arquitetural, quando ele próprio o utilizava freqüentemente nos seus sermões. A doutrina de São Bernardo é essencialmente mística: queremos dizer que ele encara sobretudo as coisas divinas sob o aspecto do amor, o que seria, aliás, errado interpretar aqui num sentido simplesmente afetivo, como o fazem os modernos psicólogos. Tal como muitos dos grandes místicos, ele foi especialmente atraído pelo “Cântico dos Cânticos”, que comentou em numerosos sermões, formando uma série que prosseguiu através de quase toda a sua carreira; e este comentário, que ficou por terminar, descreve todos os graus do amor divino até à paz suprema que a alma alcança no êxtase.
O estado de êxtase, tal como ele o compreende e certamente alcançou, é uma espécie de morte para as coisas deste mundo; com as imagens sensíveis todo o sentimento natural desaparece tudo é puro e espiritual na alma como no seu amor. Este misticismo devia naturalmente refletir-se nos tratados dogmáticos de São Bernardo; o título de um dos principais, “De diligendo Deo”, mostra efetivamente o lugar aí ocupado pelo amor; mas seria errado acreditar que isso aconteça em detrimento da verdadeira intelectualidade. Se o abade de Claraval quis sempre permanecer estranho às vãs sutilezas da escola é porque não tinha qualquer necessidade dos laboriosos artifícios da dialética; resolviam de um só golpe as questões mais árduas, nunca procedendo segundo uma longa série de operações discursivas; aquilo que os filósofos se esforçam em alcançar através de um desvio, e como que tateando, ele atingia-o imediatamente pela intuição espiritual, sem a qual nenhuma metafísica real é possível, e fora da qual só se pode colher uma sombra da verdade.
Um último traço da fisionomia de São Bernardo que é ainda necessário assinalar é o lugar eminente ocupado na sua vida e nas suas obras pelo culto da Santa Virgem (n.T. Ao aspecto FEMININO da Divindade, algo que era também praticado secretamente pelos Cavaleiros Templários) e que deu lugar a um florescer de lendas que são talvez o seu traço mais popular. Ele gostava de dar à Virgem o título de Nossa Senhora, tendo-se esse uso generalizado desde então, e sem dúvida em grande parte graças à sua influência; é que ele era, como se disse, um verdadeiro “cavaleiro de Maria” e via-a realmente como a sua “dama” no sentido cavalheiresco desta palavra. Se se aproximar este fato do papel que desempenha o amor na sua doutrina, e que desempenhava também, sob formas mais ou menos simbólicas, nas concepções próprias das Ordens de Cavalaria, compreender-se-á facilmente a razão pela qual nós tivemos o cuidado de mencionar as suas origens familiares.
Mesmo depois de se fazer monge continuou a ser cavaleiro, como eram todos os da sua raça; e por isso mesmo se pode dizer que ele estava de certo modo predestinado a desempenhar, como o fez em tantas circunstâncias, o papel de intermediário, de conciliador e de árbitro entre o poder religioso e o poder político, porque havia na sua pessoa como que uma participação na natureza de um e de outro.
Monge e cavaleiro, simultaneamente, estes dois caracteres eram os dos membros da “milícia de Deus” da Ordem do Templo; eram também, e primeiro que tudo, os do autor da sua regra, do grande santo que foi chamado de o último dos Padres da Igreja e em quem alguns querem ver, não sem alguma razão, o protótipo de Gallahad, o cavaleiro ideal e sem mancha, o herói vitorioso da “demanda do Santo Graal”.
Fonte: https://www.sophia.bem-vindo.net/tiki-index.php?page=Guenon+Bernardo