Como vimos, os modernos estudos históricos apresentaram um conjunto de novas e intrigantes descobertas sobre as origens da cristandade. Contudo, é crescente o abismo entre o que os estudiosos da Bíblia sabem sobre religião e o que os próprios cristãos conhecem. Burton L. Mack, professor de Estudos do Novo Testamento na Claremont School of Theology, Califórnia, recentemente lamentava «a terrível falta de conhecimento básico sobre a formação do Novo Testamento entre os cristãos típicos».
Capítulo 13a – FILHO DA DEUSA – Livro “The Templar Revelation – Secret Guardians of the True Identity of Christ”, de Lynn Picknett e Clive Prince.
Que a análise do Novo Testamento, tal como a conhecemos, começasse apenas no século XIX reflete a relutância quase supersticiosa em examinar os textos originais, que resultou da antiga e duradoura proibição da Igreja quanto à leitura da Bíblia pelas massas. Durante séculos, apenas os sacerdotes liam as Escrituras – de fato, na maioria dos casos, eles tinham o monopólio da literatura. O nascimento do protestantismo venceu parcialmente esta exclusividade e concedeu a um número muito maior de pessoas acesso aos textos, que elas consideravam sagrados.
Contudo, todas as formas extremistas do movimento protestante – desde o puritanismo até ao que é conhecido agora como fundamentalismo – têm insistido na inspiração divina por detrás das palavras do Novo Testamento, e apenas com esse fundamento, têm condenado qualquer sugestão de que elas possam não ser a verdade literal. Até hoje, milhões de cristãos ignoram a evidência de o Novo Testamento ser uma mistura de mito, invenção, versões deturpadas de relatos de testemunhas oculares e de elementos retirados de outras (muito mais antigas) tradições. Mas, ao evitar esta evidência, eles não só estão em erro como também mantêm um sistema de crenças que é progressivamente vulnerável à crítica.
Quando os estudiosos do século XIX começaram a empregar os mesmos critérios, habitualmente usados para analisar outros textos históricos, os resultados foram extremamente significativos. Um dos primeiros novos desenvolvimentos a emergir foi a asserção de que Jesus nunca existiu e de que os Evangelhos são simplesmente compostos por elementos míticos e metafóricos. Atualmente, são raros os eruditos que concordam com esta ideia – embora, como veremos, ela ainda tenha defensores. A causa de um Jesus histórico é bastante sólida, mas vale a pena examinar o raciocínio dos que pensavam que não era; e que Jesus era uma completa invenção dos primeiros cristãos.
Os defensores desta ideia afirmam que, à margem dos próprios Evangelhos, não existe nenhuma prova independente de que ele tivesse, de fato, existido. (Esta ideia, só por si, constitui um choque para muitos cristãos que assumem que, porque ele é central para o seu mundo, devia ter sido muito famoso na sua época: na verdade, ele não é referido em nenhum texto contemporâneo.) Os outros livros do Novo Testamento – por exemplo, as Epístolas de Paulo – aceitam a existência de Jesus como verdadeira, mas não apresentam nenhuma prova sólida dela. Paulo, cujas cartas são os mais antigos escritos cristãos conhecidos, não apresenta quaisquer pormenores biográficos sobre Jesus, além dos que rodearam a sua crucificação – nada sobre os seus pais, o seu nascimento ou ambiente familiar. Mas Paulo, como os outros autores do Novo Testamento, está mais interessado na teologia, em manter o movimento de Jesus e em explicar as suas doutrinas do que na biografia do seu fundador.
Muitos historiadores do século XIX preocuparam-se com a ausência de quaisquer registos contemporâneos de Jesus. Como escreveu Bamber Gascoigne: «Durante os primeiros cinquenta anos do que chamamos a era cristã, não existe nem uma palavra sobre Cristo ou os seus discípulos.» O escritor romano Tácito (nos seus Anais, c. 115 d.C.) regista o progresso do cristianismo – que ele denomina uma «superstição perigosa» – em Jerusalém e em Roma, e refere, de passagem, a execução do seu fundador, mas não apresenta pormenores e refere-se-lhe simplesmente pelo título de «Cristo».
Suetônio, nos seus Livros de César (c. 120), refere-se à agitação entre os judeus de Roma em 49 d.C., por instigação de «Cresto». Esta referência é muito citada como prova de um ramo romano do cristianismo, mas não é necessariamente assim. Havia muitos autoproclamados Messias entre os judeus dessa época, e todos podiam ser designados, em grego, «cristos», e Suetônio escreve como se este estivesse ativamente, e em pessoa, a incitar à rebelião dos judeus de Roma nessa época. Outro romano notável, que teve relações comerciais com os cristãos nos primeiros anos do século I, foi Plínio, o Moço, mas, para além de dizer que o seu movimento foi fundado por «Cristo», não dá outras informações sobre eles. Mas, neste relato, o que é particularmente interessante é o fato de ele revelar que este Cristo já era considerado um Deus.
Estes eram escritores romanos, e, como a Palestina era um lugar remoto do seu império, não é surpreendente que eles ignorassem Jesus e os primeiros tempos da Igreja cristã. (Além disso, os rebeldes e os criminosos não eram tão prontamente trazidos às luzes da ribalta como são na nossa época, que se interessa pela celebridade. Mesmo à revolta do ex-escravo Espártaco foi concedido relativamente pouco espaço de crônica. Contudo, ter-se-ia imaginado que a vida e o ministério de Jesus tivessem sido citados nas obras de Flávio Josefo (38-c. 100), um judeu que mudou de partido na revolta judaica e escreveu dois livros, registando a crônica desse período.
Tempos Antigos dos Judeus (escrito por volta de 93 d. C.) menciona, de fato, outras figuras do Evangelho, especificamente João Baptista e Pôncio Pilatos. Há uma referência a Jesus, mas, infelizmente, há muito se reconheceu ter sido acrescentada à obra de Josefo por um escritor cristão, muito posterior, provavelmente no princípio do século IV – precisamente para vencer o silêncio, de outro modo embaraçoso, sobre o assunto. De fato, aquela referência a Jesus é tão reverente que os comentadores se têm interrogado sobre a razão por que Josefo, se realmente julgava Jesus em termos tão entusiásticos, nunca se converteu ao cristianismo! A verdadeira questão, no entanto, era saber se esta inserção se destinava, ou não, a introduzir uma referência onde não havia nenhuma ou se era a substituta de outra, que era menos lisonjeira, relativamente a Jesus e ao seu movimento.
Não podemos ter a certeza de nenhuma das alternativas, embora o peso da evidência a favor dela seja uma completa invenção; o trecho não está de acordo com o estilo de Josefo e não se enquadra no fluxo da história. Além disso, o escritor cristão Orígenes, no fim do século III, não parece ter tido conhecimento de qualquer referência a Jesus na obra de Josefo. (Embora Eusébio cite a referência quando escreve no século seguinte.) Contudo, a referência de Josefo à pregação de João Baptista e à sua execução por Herodes Antipas não é posta em questão.
Evidentemente, a falta de referências contemporâneas a Jesus, à margem dos Evangelhos, não significa que ele não tivesse existido. Pode significar apenas que o seu impacto na sua época e lugar não foi suficientemente forte. Afinal, havia muitos outros supostos Messias na época, que não despertaram a atenção.
Há também outro problema: se essa pessoa não existiu, por que razão tantas pessoas teriam acreditado na história, a ponto de uma religião, em seu nome, ter florescido tão rapidamente? Como observa Geoffrey Asse, o conceito de personagens fictícias, que tem um tão grande papel na nossa cultura, não era familiar aos escritores antigos. Mesmo que escrevessem o que era essencialmente ficção, era sempre baseado em figuras reais, como Alexandre, o Grande. Apenas por esta razão, parece altamente improvável que Jesus fosse uma completa invenção – e, se tivesse sido simplesmente uma grande exigência cultural ou espiritual de um «deus-que-morre», havia muitos por onde escolher, como veremos. Não havia nenhuma necessidade de inventar mais um.
Também é significativo que os evangelistas colocassem Jesus contra um fundo de conhecidas figuras históricas, como João Batista e Pilatos. Este fato também é um argumento a favor da sua existência real, e, além disso, nenhum dos primeiros críticos do cristianismo contestou a existência do seu fundador, o que certamente teriam feito se tivessem existido quaisquer dúvidas sobre a questão.
E o próprio modo como Jesus é retratado indica que ele era um homem real. Nenhum escritor se teria dado ao incômodo de criar um Messias fictício e, contudo, apresentá-lo como sendo tão ambíguo e ilusório quanto ao seu papel, nem teria deixado tantas frases e alusões impenetráveis entre as suas alegadas doutrinas. A ambiguidade, as aparentes contradições, os ocasionais arranjos de frases, completamente ininteligíveis, marcam os Evangelhos como os relatos – algo confusos – das palavras e dos atos de uma genuína figura histórica.
A falta de qualquer referência de pormenores biográficos de Jesus, nos escritos de Paulo, tem sido considerada pelos críticos como prova de que Cristo não existiu. Mas ninguém defende que o próprio Paulo fosse uma invenção – e ele, definitivamente, conhecia pessoas que se tinham encontrado com Jesus. Por exemplo, Paulo não só conheceu Pedro como se zangou com ele (e este comportamento quase inconveniente é prova de que eles eram autênticos – nenhum escritor daquela época teria tornado os seus heróis tão imperfeitos). Assim, parece verosímil que Jesus existiu – mas, evidentemente, isso não significa, só por si, que tudo nos Evangelhos seja verdadeiro.
Mas havia outra razão para que muitos escritores do século XIX duvidassem da existência de Jesus. À medida que aumentava o conhecimento histórico e o Novo Testamento era submetido a uma crescente análise crítica, tornou-se óbvio que a história de Jesus tinha paralelos, misteriosamente estreitos, com os das famosas figuras mitológicas; especificamente, com os deuses-que-morrem-e-ressuscitam, do antigo Médio Oriente, que eram venerados nos cultos de mistério, que floresciam em simultâneo com o cristianismo e que de longa data o precediam.
Uma das mais eruditas e convincentes exposições deste argumento é Pagan Christs de J. M. Robertson, publicado em 1903. Na sua introdução a uma recente epítome, Hector Hawton resumiu a situação em forma de pergunta:
[…] ninguém defende seriamente que Adônis, Átis e Osíris fossem figuras históricas… então, por que se abriu uma exceção para o alegado fundador do cristianismo?
Estes paralelos relacionam-se com o cristianismo de duas formas. Primeiro, nos relatos dos acontecimentos da vida de Jesus, como a sua morte e ressurreição e com a instituição da eucaristia, na Última Ceia; em segundo lugar, no significado investido nestes acontecimentos pelos primeiros cristãos. Um breve resumo dos aspectos considerados importantes por Robertson e por outros notáveis comentadores sublinha o fato de que muitas das partes mais sagradas da história de Jesus são idênticas às das outras religiões antigas. Robertson escreve:
Como Cristo, e como Adónis e Átis, Osíris e Dionísio também morrem e ressuscitam. Identificarem-se com eles é a paixão mística dos crentes. São todos idênticos quanto aos seus mistérios conferirem a imortalidade. Do mitraísmo, Cristo retira as chaves simbólicas do céu e assume o papel de Saoshayant, nascido de uma virgem, o destruidor do Mal… Nos princípios, portanto, o cristianismo é apenas o paganismo reformulado.
O mito cristão desenvolveu-se através da absorção de pormenores dos cultos pagãos… como a imagem do menino-deus do culto de Dionísio, ele foi representado enfaixado, numa manjedoura. Nasceu num estábulo, como Hórus – o estábulo do templo da deusa virgem ÍSIS, rainha do céu. E, como Dionísio, transformou a água em vinho; como Esculápio, ressuscitou homens e deu visão aos cegos; e, como Átis e Adônis, foi chorado e festejado por mulheres. Como Mitra, ressuscitou de um túmulo na rocha… Não há nenhuma concepção associada a Cristo que não seja comum a alguns, ou a todos, os cultos do Salvador na Antiguidade.
Se é espantoso que as questões levantadas por Robertson, e outros, tivessem tão pouco impacto na época, é ainda mais surpreendente que elas ainda continuem a ser largamente ignoradas. Uma voz mais recente sobre o assunto é a de Burton L. Muck, que, em 1994, escreveu:
Estudo após estudo têm demonstrado que o cristianismo primitivo não era uma religião invulgar, mas que fora influenciada pelas religiões dos fins dos tempos da antiguidade… inquietante era a descoberta de que o cristianismo primitivo apresentava uma nítida semelhança com os cultos de mistério helenísticos, particularmente no mais importante, nomeadamente nos seus mitos de deuses que morrem e ressuscitam e nos seus rituais de batismo e de refeições sagradas.
Hugh Schonfield escreve em The Passover Plot:
Os cristãos ainda continuam a ser perturbados pelas doutrinas contraditórias da Igreja, que tiveram origem na tentativa infeliz de combinar ideais pagãos e judaicos incompatíveis.
Eruditos, como Robertson, consideram inconcebível que fosse uma coincidência que tantos elementos dos cultos dos deuses, que morrem e ressuscitam, se encontrassem na história de Jesus. Concluíram que os Evangelhos tinham extraído os acontecimentos-chave das histórias de Osíris, de Átis e de outros idênticos, e enxertaram-nos num herói «nacional» – Jesus – que nunca existiu.
Um recente defensor desta ideia é Ahmed Osman que, em House of the Messiah, apresenta a teoria de que os Evangelhos registram, de fato, um drama sagrado que remonta aos tempos do Antigo Egito. Como os seus predecessores, Osman fundamenta os seus argumentos nos surpreendentes paralelos entre o mito de Jesus e as histórias da antiga religião egípcia e nas dúvidas sobre a existência histórica de Jesus.
Mas por que deveria alguém apoderar-se de um drama religioso de outra tradição e introduzir nele pessoas reais como João Batista? Osman pensa que a história dos Evangelhos foi uma invenção dos partidários de João Baptista. Segundo a sua tese, eles inventaram Jesus para cumprir a profecia do seu mestre sobre aquele que deveria vir depois dele e cujo anunciado advento era, presumivelmente, conspícuo pela sua ausência. Contudo, esta tese é implausível por várias razões: os discípulos de João dificilmente teriam inventado uma história em que o seu amado mestre fosse marginalizado – apenas sendo incluído para preparar a cena para a glorificação de outrem. E, como veremos, de modo algum é certo que João tivesse feito a famosa profecia sobre um maior, que deveria vir depois dele.
Segundo Osman, ninguém teria conhecido a missão de Jesus como redentor, antes de ele ter morrido, porque não teria tido muitos partidários durante a sua vida. É evidente que Osman pensa que os judeus esperavam um Messias que morresse por eles. Mas não é o caso – os judeus nunca esperaram que o seu rei-herói fosse sacrificado ou humilhado desta maneira. Toda a ideia da morte redentora, tal como a conhecemos, foi uma interpretação cristã posterior.
Atualmente, são raros os eruditos que duvidam da existência de Jesus, embora a maioria deles ainda tenha problemas com os claros exemplos de referências de escolas de mistério nos Evangelhos. Verificando que é impossível conciliá-los com os elementos judaicos mais óbvios, eles têm tendência a rejeitar as alusões pagãs. Afirmam que estas foram acrescentadas quando os primeiros cristãos entraram em contato com o Império romano mais vasto, particularmente em resultado das viagens de Paulo. Segundo a ideia oficial, a Igreja de Jerusalém, dirigida por Tiago, o Justo, irmão de Jesus, representava a forma «pura» e original do cristianismo.
Infelizmente, devido a um acidente da história, a igreja de Tiago foi aniquilada durante a revolta judaica, assim, a natureza das suas crenças tem de permanecer matéria para especulação. Sabemos, contudo, que os seus seguidores prestavam culto no Templo de Jerusalém, portanto, é razoável pensar que as suas crenças eram baseadas nas práticas judaicas. Depois do colapso da Igreja de Jerusalém, a cena estava livre para ser ocupada por Paulo. Aparentemente, este fato parece oferecer uma solução airosa para o problema de se encontrarem tantos elementos de escolas de mistério nos Evangelhos, tal como os conhecemos.
Podia haver outra explicação – se o argumento fosse invertido. E se a versão do cristianismo de Paulo estivesse mais próxima das doutrinas de Jesus e fosse a Igreja de Jerusalém que estivesse errada? Os irmãos não se compreendem inevitavelmente uns aos outros, e certamente havia uma acentuada frieza entre Jesus e a sua família, portanto não há razões para supor que o cristianismo de Tiago estivesse mais próximo das doutrinas originais de Jesus que o de Paulo.
A ideia oficial do progresso do cristianismo primitivo não explica por que razão Paulo, sendo um judeu, terá sentido a necessidade de pregar uma forma paganizada da nova religião. A sua famosa conversão na estrada de Damasco aconteceu, provavelmente, nos primeiros cincos anos, no máximo, após a crucificação – e, como o seu papel anterior tinha sido o de perseguidor de cristãos, presumivelmente ele tinha uma ideia sólida do motivo por que os perseguia.
As nossas descobertas sobre Madalena ter sido uma iniciadora numa escola de mistérios comportavam a implicação de que o próprio Jesus fosse também um iniciado – talvez porque ela o iniciasse. Mas como poderia ele estar tão profundamente envolvido com um culto pagão, quando todos sabem que ele era judeu? Descobrimos que nada deve ser aceito como verdadeiro nesta história. Julgamos que valia a pena desafiar frontalmente as habituais ideias preconcebidas sobre a formação religiosa de Jesus. Como Morton Smith afirma com ironia em Jesus, the Magician (que iremos discutir em pormenor):
Certamente que Jesus era judeu, assim como todos os seus discípulos – presumivelmente. A presunção não é certa, para começar, vale a pena perguntar como «sabemos» estas coisas sobre Jesus.
A ideia acadêmica de Jesus, acima discutida, baseia-se em duas hipóteses que tentam explicar a evidente contradição entre os elementos judaicos e pagãos na sua história.
A primeira hipótese é que Jesus fosse judeu – embora a que seita exatamente pertencia seja uma questão discutível. Como vimos, a segunda hipótese é de que os aspectos manifestamente pagãos e de culto de mistérios das histórias dos Evangelhos fossem consequência de invenções posteriores. O argumento é que, como o cristianismo começou a divulgar-se em comunidades não judaicas do mundo romano, foram notadas e assimiladas afinidades com os mistérios, especialmente porque podiam ajudar a minimizar o conspícuo fracasso de Jesus no desempenho do papel do Messias judaico.
Causou-nos um choque compreender que estas eram apenas hipóteses e não fatos solidamente comprovados. Nenhuma delas se baseia na qualidade de evidência normalmente exigida pelos historiadores. Não há nenhuma prova sólida de que os elementos pagãos tiveram origem em Paulo. Podem, evidentemente, ter surgido através de algum dos seus colegas missionários – a expansão do cristianismo não foi, apesar do sucesso da publicidade de Paulo, inteiramente devida a ele. Quando chegou a Roma, por exemplo, descobriu que já lá existiam cristãos.
Parece que, mesmo no céptico século XX, há uma aceitação tácita tão generalizada da história cristã que mesmo os acadêmicos, normalmente críticos, não reconhecem as suas próprias ideias preconcebidas. Por exemplo, A. N. Wilson, geralmente um comentador arguto e analítico, escreveu estas duas frases, uma após outra, sem notar aparentemente a contradição entre elas:
[…1 é necessário, antes de começar [a tentar responder às perguntas sobre o Jesus histórico], esvaziar a mente e não aceitar nada como verdadeiro. O centro da doutrina de Jesus era a sua fé em Deus e a sua fé no judaísmo.
Decidimos ver o que aconteceria se questionássemos estas hipóteses.
A versão oficial dos primeiros progressos do cristianismo parte da premissa básica de que Jesus era de religião judaica, o que significava que muitos aspectos, de outro modo intrigantes, da história dos Evangelhos fossem automaticamente rejeitados. Examinemos com maior minúcia a hipótese do judaísmo – que implica, certamente, um fundo étnico e religioso – de Jesus, e, em breve, estávamos a contestá-la. (Jesus pode ter sido etnicamente um judeu, mas não de religião judaica: com vista a este argumento, usaremos o termo «judeu», quando referido a Jesus, apenas no último sentido, salvo indicação contrária.)
A nossa contestação desta hipótese não era, evidentemente, destituída de receio. Afinal, estávamos a assumir todo o peso de mais de um século de estudo do Novo Testamento. Assim, ficamos muito aliviados ao descobrir que a mais recente tendência dos estudos do Novo Testamento se baseava exatamente na mesma pergunta: Jesus era realmente judeu?
A primeira destas obras a alcançar popularidade foi The Lost Gospel (1994) de Burton L. Mack, embora vários outros eruditos publicassem as suas investigações neste sentido, em revistas da especialidade, desde o fim dos anos 80. Mack abordou o problema sob a perspectiva das doutrinas de Jesus e não da história da sua vida. Baseia o seu argumento na fonte perdida dos Evangelhos sinópticos, conhecida como Q (do alemão Quelle, que significa «fonte»), ou do que dela pôde reconstituir a partir de uma comparação destes Evangelhos. Conclui que as doutrinas de Jesus não tiveram origem no judaísmo, mas estão mais próximas dos conceitos, e mesmo do estilo, de certas escolas filosóficas gregas, especialmente a dos cínicos.
Há garantias de que Q tivesse sido uma compilação das máximas e das doutrinas de Jesus, correspondendo perfeitamente ao gênero de escritos contemporâneos conhecidos como «literatura da sabedoria», que se sabia ter existido em hebraico antigo, mas que, de modo algum, era única da religião ou cultura judaicas. Também era popular no mundo helenístico, no Oriente Médio e no Antigo Egito. Uma autoridade, Kloppenborg, demonstrou que Q segue de muito perto o modelo dos «manuais de instruções» helenísticos. Q difere desses manuais pela inclusão de elementos proféticos e apocalípticos, mas Mack pensa que apenas a «literatura da sabedoria» constituía a Q original e que os outros elementos foram incluídos posteriormente.
Mack e outros eruditos, que seguem a mesma orientação, baseiam as suas conclusões nas doutrinas e máximas de Jesus. Continuam a rejeitar os acontecimentos, tal como os Evangelhos os registram, porque não estão de harmonia com as tradições dos judeus ou dos cínicos e sugerem que os temas do deus que-morre-e-ressuscita e das escolas de mistérios são invenções posteriores dos cristãos primitivo. Fizemos a nós mesmos a seguinte pergunta: há alguma evidência que prove que Jesus não era judeu? Por outro lado, havia alguma evidência que provasse, de forma conclusiva, que era? Os elementos da escola de mistérios tornam as coisas mais fáceis ou mais difíceis de explicar?
É reconhecido que o ministério de Jesus ocorreu num contexto judaico – a Judeia do primeiro século – e a maior parte dos que o seguiam também eram judeus. Os seus discípulos imediatos e os que escreveram os Evangelhos pareciam ter acreditado que ele era judeu. Contudo, os seus adeptos parecem tê-lo considerado um tanto enigmático – por exemplo, eles não tinham a certeza de ele ser o Messias – e os evangelistas fizeram um esforço evidente para conciliar os elementos contraditórios da sua vida e da sua doutrina. parecem não ter a certeza quanto ao modo de tratar com ele.
À primeira vista, pareceria haver um bom argumento para acreditar que Jesus era judeu. Referia-se, com frequência, a figuras religiosas do Antigo Testamento, como Abraão e Moisés, e entrava em debate com os fariseus sobre aspectos da lei judaica – se ele não fosse judeu, seguramente não havia razão para que o fizesse tão obsessivamente.
Mas a maioria dos eruditos concorda que estes trechos são os que têm menor probabilidade de ser as palavras genuínas de Jesus. Foram incluídos mais tarde, porque os apóstolos começaram a debater pontos da lei judaica e sentiram necessidade de criar uma justificação retrospectiva dos seus argumentos, usando o próprio Jesus. A prova disto é que os antagonistas das histórias do Novo Testamento são geralmente fariseus, que não tinham, de fato, nenhuma função ou autoridade especial – notavelmente, na Galiléia – na época de Jesus, ao passo que estavam em ascensão quando os Evangelhos estavam a ser compilados. Como escreve Morton Smith:
Quase todas as referências dos Evangelhos aos fariseus podem ser comprovadas como tendo origem nos anos 70, 80 e 90, os últimos anos da edição dos Evangelhos.
A única maneira de compreender as verdadeiras origens de Jesus é situá-lo no contexto do seu tempo e lugar. Embora haja um debate continuado sobre o lugar onde nasceu e cresceu, como veremos, os Evangelhos estão de acordo em que ele iniciou a sua missão a partir da Galiléia. Mas é improvável que ele fosse um habitante local, porque, enquanto os Evangelhos referem o sotaque caracteristicamente galileu dos discípulos – que era considerado comicamente rústico pelos habitantes da Judeia -, curiosamente, esta referência não era feita a Jesus. O que sabemos da Galileia do tempo de Jesus? Mack resume, de forma perfeita, a atual visão acadêmica desse tempo e lugar:
No mundo da imaginação cristã, a Galileia pertencia à Palestina, a religião da Palestina era o judaísmo, logo todos os habitantes da Galileia deviam ter sido judeus. Uma vez que este quadro está errado… o leitor tem de ter em mente um quadro mais verdadeiro.
O que consideramos judaísmo da época de Jesus – a partir do quadro apresentado pelos Evangelhos – era, de fato, apenas o judaísmo do templo da Judeia, cujo culto se centrava no Templo de Jerusalém. Foi instituído pelos judeus depois do seu traumático cativeiro da Babilônia e estava num estado de constante fluxo. Mas nem todos os judeus tinham estado exilados, e a sua versão do judaísmo desenvolveu-se de forma distinta e era muito diferente da dos ex-cativos que regressaram. A religião dos não-exilados era praticada, particularmente, na Samaria e na Galileia, a norte, e na Idumeia, a sul da Judeia.
A Galileia, no entanto, não era um viveiro de judaísmo fervoroso – de qualquer tipo. De fato, apenas durante um curto espaço de tempo, ela fizera parte do reino de Israel, muitos séculos antes de Jesus, e desde então sofrera a influência de várias culturas distintas. Não era por acaso que a Galileia era considerada a «pátria dos pagãos». Era mesmo mais cosmopolita que a Samaria, situada entre a Judeia e a Galileia. Como escreve Mack: «Seria errado imaginar a Galileia como subitamente convertida a uma lealdade e cultura judaicas.”
A Galileia, com o seu bom clima para a agricultura e pesca lucrativa no lago da Galileia, era uma área rica e fértil. Tinha vastas associações comerciais com as outras culturas do mundo helenístico e encontrava-se no centro de uma rede de rotas comerciais que conduziam à Síria, Babilônia e Egito. Era a pátria de gentes de muitas terras e culturas, e mesmo os membros das tribos beduínas eram visitantes habituais. Como indica Morton Smith, as principais influências na religião da Galileia dessa época eram «nativas, palestinianas, pagano-semitas, gregas, persas, fenícias e egípcias».
Os galileus eram famosos pela sua feroz independência. Mas, nas palavras de Mack, a área não tinha «cidade capital, nem templo e nem hierarquia de sacerdotes». Curiosamente, a mais antiga sinagoga da Galileia data apenas do terceiro século da era cristã.
A região fora anexada a Israel em 100 a.C. e, pouco depois, em 63 a.C., os romanos conquistaram toda a Palestina e transformaram-na numa província do seu império. Quando Jesus nasceu, Israel inteiro era governado pelo rei títere dos romanos, Herodes, o Grande – que era, na verdade, um idumeu politeísta -, mas, na época do seu ministério, o país fora dividido entre os três filhos de Herodes. Herodes Antipas governava a Galileia e (depois de seu irmão Arquelau ter sido forçado a retirar-se para as propriedades da família Herodes, no Sul de França) a Judeia era governada diretamente por Roma, por intermédio de Pôncio Pilatos.
No tempo de Jesus, a Galileia era uma região rica e cosmopolita – muito diferente do lugar remoto e rústico da imaginação popular – que nem era predominantemente judaica e para a qual as autoridades de Jerusalém não teriam sido mais populares que os seus senhores romanos.
Uma vez que se tenha compreendido que a Galileia tinha sido muito diferente da imagem tradicional do lugar onde Jesus iniciou o seu ministério, imediatamente se levantam perguntas sobre os seus verdadeiros objetivos e motivações. Se a Galileia fosse realmente uma cultura sofisticada, sem quaisquer preconceitos fanáticos anti-romanos e pró judaicos, então estava Jesus realmente a tentar incitar a sua população à revolta contra os romanos, como sugerem alguns comentadores modernos? E era a Galileia o lugar mais indicado para lançar qualquer tipo de campanha para reformar o judaísmo, como outros pensam?
Embora existissem judeus na Galileia, havia também muitas outras religiões que coexistiam numa invejável atmosfera de tolerância. Havia mesmo formas «heréticas» de judaísmo que lá floresciam, o que torna ainda mais implausível que a Galileia fosse solo favorável à implantação de qualquer gênero de reforma judaica. Numa área em que, segundo parece, virtualmente tudo estava associado à religião, uma tentativa de redefinir o judaísmo oficial teria caído em solo improdutivo. E teria feito ainda menos sentido o culminar da missão de Jesus em Jerusalém. Como afirma Schonfield em The Passover Plot:
[…] os judeus consideravam a Palestina do norte como a pátria natural da heresia… Não conhecemos muito da antiga religião israelita, mas dir-se-ia que ela absorvera muito do culto dos sírios e dos fenícios que não foi erradicado na mesma medida, como aconteceu no sul, pelo zelo reformista de Ezra e dos seus sucessores.
Outro território do norte, que iria ser importante para Jesus, era Samaria, tornada famosa pelo episódio do Bom Samaritano. Devido aos inumeráveis sermões sobre o tema, os fiéis julgam que os samaritanos eram injuriados pelos outros judeus, e que o samaritano que atravessou a estrada para socorrer a vítima de uma agressão, um exemplo perfeito da necessidade de reconhecer o potencial de toda a gente para o bem.
Mas há outra razão para levar a sério o samaritano, no contexto desta investigação. Os samaritanos tinham as suas próprias expectativas de um Messias iminente, a quem chamavam o Ta’eb, e que era bastante diferente da versão judaica. No Evangelho de João (4:6-10), lemos o relato do encontro de Jesus com uma mulher samaritana junto a um poço; a mulher reconheceu-o como o Messias – presumivelmente, como Ta’eb -, o que sugere que o judaísmo de Jesus era, no mínimo, não ortodoxo. Talvez Jesus inventasse a parábola do Bom Samaritano como uma forma de agradecimento pelo apoio dos samaritanos.
Outro conceito errado sobre os antecedentes de Jesus é a ideia de que ele era «Jesus de Nazaré» – isto é, que viera da cidade daquele nome, que existe no Israel moderno. Mas, de fato, não existem registros de tal lugar chamado de Nazaré até ao século III. A palavra deveria ser nazoreano, que identifica Jesus como membro de uma das várias seitas que, coletivamente, usavam o mesmo nome – mas não como seu fundador. Os nazoreanos eram um grupo de seitas associadas sobre as quais pouco se conhece. Contudo, a palavra, em si, é significativa porque deriva do hebraico Notsrim, que significa «guardiães ou defensores… aqueles que mantinham a verdadeira doutrina e tradição ou que guardavam certos segredos, que não divulgavam a outros… ».
Isto, em si mesmo, está em oposição a um dos maiores princípios do cristianismo: a religião é para todos e não tem segredos – o pólo oposto das escolas de mistérios, que ofereciam diferentes graus de conhecimento ou de iluminação aos que subiam os degraus, cada vez mais íngremes, da iniciação. Para estes cultos, a sabedoria apenas é concedida se for merecida, e um discípulo recebe o conhecimento apenas quando os seus mestres espirituais o consideram preparado para ele. Este era um conceito muito comum no tempo de Jesus: as escolas de mistérios da Grécia, Roma, Babilônia e do Egito aplicavam, como rotina, estes métodos estruturados e guardavam ciosamente os seus segredos.
Atualmente, o método das escolas de mistérios é aplicado por muitas religiões orientais e escolas filosóficas (incluindo o budismo zen) – e também por grupos, como os a Ordem dos Cavaleiros Templários e os maçons. Toda a noção de iniciação é também o que deu o nome ao oculto, porque, como vimos, a palavra significa apenas «escondido» – os mistérios permanecem secretos até que seja o momento certo e o discípulo esteja preparado. Se a doutrina de Jesus não era destinada às massas, então, pela sua própria natureza, era elitista e hierárquica – e oculta. E, como vimos, ao reavaliar a verdadeira posição de Maria Madalena, há demasiadas semelhanças entre as escolas de mistérios e o movimento de Jesus para serem ignoradas.
Há muitas outras idéias erradas sobre Jesus. Por exemplo, a história do Natal é, na sua maior parte, um conto de fadas – fazendo parte dos mitos da natividade dos deuses-que-morrem -, mas há dúvidas de que Jesus tenha nascido em Belém. De fato, o Evangelho de S. João (7:42) declara explicitamente que Jesus não nasceu lá.
Enquanto a maioria dos elementos da natividade derivaram, claramente, dos mitos do nascimento dos deuses-que-morrem-e-ressuscitam, a visita dos magos do Oriente baseou-se num relato contemporâneo da vida do imperador Nero. Estas figuras, por vezes, são conhecidas como magos, que é um título específico atribuído a uma tradição de magos persas – ou mágicos. Parece muito estranho ver o equivalente a três Aleister Crowley a visitar o Menino Jesus para oferecer presentes, sem qualquer palavra de crítica ou censura dos Evangelhos. Sem dúvida que se espera que fiquemos impressionados pela história dos feiticeiros oferecendo a Jesus ouro, incenso e mirra. (Mas, como vimos, Leonardo da Vinci, na sua Adoração dos Magos, omitiu o ouro, símbolo de realeza e perfeição.)
Como vimos, Jesus é referido como um naggar, que significa um carpinteiro e um estudioso ou homem erudito – neste caso, provavelmente, o último significado. Nem era provável que os mais famosos discípulos de Jesus fossem os humildes pescadores da lenda: A. N. Wilson observa que eles, de fato, possuíam uma empresa de pesca no lago da Galileia. (Além disso, como comenta Morton-Smith, alguns dos discípulos eram claramente não judeus: Filipe é um nome grego, por exemplo.)
Muitos comentadores usaram as parábolas como prova de que Jesus era oriundo de um ambiente humilde: habitualmente, usava analogias que giravam em torno de situações quotidianas rurais e domésticas, e esse fato é tomado como prova de que ele tinha experiência dessas coisas. Outros, no entanto, observaram que as suas imagens revelam apenas um conhecimento superficial das realidades terrenas da vida – como se ele fosse, de fato, uma pessoa muito mais importante, que tentava deliberadamente dirigir-se às massas, como um aristocrata. Um candidato conservador a discursar para eleitores da classe operária em termos que ele espera que lhes sejam familiares.
Ainda que as Bodas de Canaã não fosse, como alguns acreditam, a cerimônia do seu casamento com Maria Madalena, mesmo assim revela que ele frequentava círculos «sociais», a julgar pelo grau das celebrações. E o incidente dos soldados romanos que, aos pés da cruz, lançaram sortes sobre as vestes de Jesus implica que valia a pena ganhá-las. Ninguém joga a dinheiro por pedaços de pano inferior.
Assim, começa a emergir um quadro do ambiente básico de Jesus que é muito diferente daquele a que nos habituamos a aceitar. A questão seguinte é saber se há alguma hipótese que tenhamos razões para colocar. Por exemplo, há alguma prova positiva, nos Evangelhos, a ideia de que Jesus era um não judeu?
Depois do seu batismo, Jesus retirou-se para o deserto, onde foi posto à prova pelo Diabo, que tentou convencê-lo a revelar a sua divindade. Mais uma vez, no entanto, este episódio não é, de modo algum, fácil de compreender. Tem sido sugerido que a tentação revela nada menos do que a implícita rejeição de Jeová por parte de Jesus, Pode ser discutível, mas um episódio reflete, de forma definitiva, a sua atitude em relação ao deus judaico.
Num dos mais famosos episódios do Novo Testamento, Jesus, cheio de justa cólera, ao ver os cambistas do templo, derruba-lhes as mesas. Apesar de este episódio parecer ser fácil de compreender, levanta um problema importante, um problema que há muito foi reconhecido, tanto pelos teólogos como pelos estudiosos do Novo Testamento.
Embora os atos de Jesus sejam usualmente explicados pelo seu horror ao ver um lugar tão sagrado conspurcado por transações financeiras, esta é uma atitude muito ocidental e, além do mais, recente. Porque o câmbio de dinheiro, para comprar animais para sacrificar no Templo de Jerusalém, não era nem corrupção nem abuso. Era uma parte fundamental do culto do templo. Como sublinha John Dominic Crossan, professor de Estudos Bíblicos da Universidade de Chicago: «Não há uma única sugestão de que alguém estivesse a fazer alguma coisa financeira ou sacrificialmente inapropriada.» E acrescenta que foi «um ataque à própria existência do templo… uma negação simbólica de tudo o que… o Templo representava».
Têm sido feitas tentativas para explicar este ato – que foi essencial para o ministério de Jesus – demonstrando que ele expressou o seu desagrado com o regime contemporâneo do Templo. Mas, no contexto dessa época e lugar, teria sido uma reação tão excessiva que sugeria desequilíbrio mental. Fazendo uma analogia moderna: seria como se um anglicano, que se opunha à ordenação de mulheres, expressasse o seu protesto entrando na Abadia de Westminster e pisando a cruz do altar. Isto não aconteceria, simplesmente porque os crentes sabem traçar a linha divisória entre a ação que é apropriada – embora possa ser simbólica – e o protesto que é, de fato, sacrílego. Jesus fez o segundo.
Assim, o judaísmo de Jesus era, no mínimo, não ortodoxo, o que deixa o campo livre para novas sugestões quanto ao que, de fato, ele era. E há claras indicações de que ele fazia parte de uma escola de mistérios. Mas há alguns episódios dos Evangelhos que indiquem que se poderia tratar deste caso? No princípio da nossa investigação, foi quase um choque descobrir que raros investigadores parecem ter feito uma das perguntas que, para nós, era absolutamente fundamental: isto é: «De onde obteve João Batista o ritual do batismo?»
Novas investigações revelaram que ele não tinha absolutamente nenhum precedente no judaísmo, embora referências a abluções rituais – repetidas imersões, simbolizando purificação – se encontrem nos manuscritos do Mar Morto. Contudo, não é exato descrever estes ritos como «batismos»; o que João defendia era um único e transformador ato de iniciação, precedido por confissão e arrependimento dos pecados. O fato de que este ritual não tinha precedente judaico é indicado pelo título ou cognome de João – João Baptista -, o único, não um entre muitos. Na verdade, este ritual tem sido tomado como invenção sua, embora haja, de fato, muitos precedentes e exatos paralelos à margem do mundo judaico.
O batismo, como o símbolo exterior e visível de uma renovação espiritual, era uma característica de muitos dos cultos de mistérios que existiam no mundo helenístico da época. Tinha uma tradição particularmente longa no antigo culto de mistério egípcio de ÍSIS e, curiosamente, o batismo, nos seus templos das margens do Nilo, era precedido de arrependimento público e confissão dos pecados ao sacerdote. (Isto será discutido mais a fundo no próximo capítulo.)
Além disso, este foi o único período da longa história da religião de ÍSIS durante o qual se enviaram missionários para além das fronteiras do Egito; assim, parece provável que João tivesse sido particularmente influenciado pelo seu ritual de batismo. Pode, como veremos, ter tido experiência pessoal da religião dos egípcios no seu solo pátrio, porque, segundo velhas tradições cristãs, a família de João fugiu para o Egito para escapar à ira de Herodes – tradições que encontraram expressão na Virgem dos Rochedos de Leonardo.
O batismo de Jesus apresenta vários problemas. Em primeiro lugar, e, de modo algum, o menos importante, está a ideia de que um filho de Deus inocente não precisava que o lavassem dos seus pecados. Não é suficiente, para diminuir a sua importância, como muitos têm tentado fazer, explicar que Jesus estava a dar um bom exemplo aos seus adeptos, porque em parte alguma dos Evangelhos isso é considerado importante. Há também, no entanto, anomalias relevantes nas próprias imagens empregadas nos relatos dos Evangelhos quando descrevem o batismo de Jesus celebrado por João. Enquanto Morton Smith observa que a imagem da descida da pomba não tem nenhum paralelo ou precedente na tradição judaica, Desmond Stewart vai mais longe, encontrando ligações definidas com o simbolismo e as práticas do antigo Egito, e escreve:
Embora Jeová, supostamente, enviasse corvos para alimentar um profeta, não costumava manifestar-se em descidas de aves. As pombas, em todo o caso, eram sagradas para a deusa pagã do amor, quer fosse conhecida por Afrodite ou Astarte…
Para o que Jesus julgou ver, o Egito oferece melhor orientação… Quando Ré [ou Rá, o deus egípcio do Sol] tomou o seu predileto, o faraó, nos braços, fê-lo sob a forma de Hórus, cujo símbolo mais comum era o falcão… A adoção, num rito batismal, de um mortal por uma divindade não punha nenhum problema importante aos egípcios.
Uma importante divindade egípcia, geralmente associada ao símbolo de uma pomba, era, mais uma vez, ÍSIS, que era conhecida por «rainha do céu», «estrela do mar» (stella Maris) e «mãe de Deus», muito antes de a Virgem Maria ter nascido. ÍSIS era frequentemente retratada a amamentar Hórus, descendente mágico dela própria e de Osíris morto. Era no festival anual, que assinalava a sua morte, e, três dias depois, a sua ressurreição, que o Sol era descrito como tendo enegrecido quando Osíris morreu e desceu ao Mundo dos Mortos. (E é um sol negro que ilumina a cena da crucificação no mural de Jean Cocteau, em Londres.)
Considerando o extraordinário zelo missionário de alguns grupos de adoradores de ÍSIS da época e a proximidade geográfica do Egito – para não referir a natureza cosmopolita da Galileia -, não é surpreendente que João, Jesus e aqueles que os seguiam tenham sido influenciados pelo culto de ÍSIS, o culta à deusa, ao feminino divino sagrado.
O que é notável é que a maioria dos cristãos ainda seja encorajada a considerar a sua fé como sendo totalmente e, em todos os aspectos, unicamente, não corrompida por qualquer outra filosofia ou religião, quando, claramente, não é esse o caso. Vejamos, por exemplo, a Ultima Ceia, durante a qual Jesus teria instituído a refeição sagrada de pão e vinho, que iria representar o seu corpo e o seu sangue sacrificiais.
- N. Wilson escreve: «Isto sugere nitidamente os cultos de mistérios do Mediterrâneo e tem pouco em comum com, o judaísmo.» Depois, usa isto como prova da sua ideia de que a Ultima Ceia foi uma invenção dos evangelistas – mas se ela tivesse realmente acontecido como um ritual pagão?
Desmond Stewart reforça o paralelo, afirmando:
[Jesus] tomou o pão e o vinho, elementos da sociabilidade quotidiana que, no entanto, assinalam o auge do simbolismo osiriano e transformam-nos, não num sacrifício, mas numa ligação entre dois estados de ser.
Os cristãos consideram a refeição sagrada de pão e vinho – o clímax da comunhão protestante e da missa católica – como sendo única de Jesus. De fato, ela já era uma prática comum de todas as mais importantes escolas de mistérios do deus-que-morre, incluindo as de Dionísio, Tamuz e Osíris. Em todos os casos, ela era interpretada como um meio de o crente se identificar com o respectivo deus e de alcançar elevação espiritual (embora os romanos expressassem horror pelo canibalismo implícito que o rito envolvia). Todos estes cultos estavam bem representados na Palestina, na época da Última Ceia, portanto é compreensível a sua influência.
Dos quatro Evangelhos, é talvez significativo que seja o de João que refere a ceia, mas omite qualquer referência à cerimônia do pão e do vinho – talvez porque não fosse nessa ocasião que ela, de fato, foi instituída. Noutro ponto do Evangelho de João (6:54), é sugerido que a refeição sagrada de pão e vinho foi promovida desde os primeiros dias da carreira de Jesus, na Galileia. O próprio conceito de comer e beber o Deus – o ritual da missa – é odioso para os judeus. Como escreve Desmond Stewart:
A noção de que o trigo era Osíris, era comum para os egípcios, enquanto uma noção semelhante estava ligada [às deusas] Deméter e Perséfone da própria Hellas [Grécia].
Outro paralelo com as escolas de mistérios – e aquele que não tem paralelo com a fé ou prática judaicas – é a história da ressurreição de Lázaro. Este é claramente um ato iniciatório: Lázaro é «ressuscitado» na morte e renascimento simbólicos, que era uma característica comum das escolas de mistérios da época e que tem eco em certos rituais da maçonaria moderna. O único Evangelho canônico que regista este episódio – o de João – torna-o milagroso, uma literal ressurreição dos mortos. Mas o Evangelho Secreto de Marcos torna claro que era apenas um ato simbólico, assinalando a «morte» do antigo ser de Lázaro e o seu renascimento como ser mais espiritual. Possivelmente, este episódio foi suprimido nos outros Evangelhos porque era uma alusão demasiado óbvia às atividades das escolas de mistérios. Mas, no que diz respeito a esta investigação, o aspecto mais significativo deste ritual é que o seu mais direto paralelo era com as cerimônias de «renascimento» do culto de ÍSIS do Egito. Como afirma Desmond Stewart (referindo-se à mística de ÍSIS do primeiro século):
[…] a evidência de Betânia indica que Jesus praticava uma espécie de mistério semelhante à que Lúcio Apuleio experimentou no culto de ÍSIS.(o culta à deusa, ao feminino divino sagrado)
Mesmo a crucificação reforça a negação judaica de que Jesus fosse o Messias esperado, porque morrer em circunstâncias tão humilhantes era a última coisa que se esperava que um Messias todo-poderoso fizesse. Este fato, por si mesmo, não preocupa excessivamente os cristãos, porque eles afirmam que o seu messianismo ultrapassou, em termos espirituais, o que os judeus esperavam dele. Contudo, há outros problemas com o relato do Novo Testamento sobre a morte de Jesus. Parece que a sua interpretação cristã, como sendo o supremo sacrifício místico, foi, de fato, inventada mais tarde para explicar a discrepância entre o que eram as expectativas judaicas do seu Messias e o que, de fato, aconteceu a Jesus.
Tem sido sugerido que Jesus e os membros do seu círculo criaram o seu próprio conceito do Messias, incorporando nele o ideal do Justo Sofredor, segundo a figura de José dos escritos judaicos apócrifos. Mas, curiosamente, no norte herético da Palestina – a Galileia – o José «Sofredor» tinha absorvido algumas das características do culto sírio de Adônis- Tamuz. Os eruditos registraram também a influência do Deus-pastor Tamuz no Cântico dos Cânticos, que é, como vimos, tão importante para o culto da Madona Negra. É provável que Jesus se intitulasse o Bom Pastor, à maneira de Tamuz, e que os seus adeptos dessa época estivessem familiarizados com a designação – Belém era um importante centro do culto de Adônis-Tamuz. (É curioso que cristãos, como S. Jerônimo, ficassem exasperados com a existência de um templo de Tamuz no suposto lugar de nascimento de Jesus, em Belém.)
No entanto, é extraordinário que, embora muitos comentadores modernos reconheçam a presença de fortes influências pagãs na vida e nas doutrinas de Jesus, não as explorem para além de uma referência superficial. Por exemplo, como escreve Hugh Schonfield:
Foi necessário que um nazoreano da Galileia compreendesse que a morte e a ressurreição eram a ponte entre as duas fases [a do justo sofredor e a do rei messiânico]. A própria tradição da terra em que Adônis morria e ressuscitava anualmente parecia exigi-lo.
Também Geoffrey Ashe reconhece: «Cristo tornou-se salvador com uma perceptível semelhança com os deuses mortos-e-ressuscitados dos mistérios, Osíris, Adónis e os restantes».
Mas o arquétipo que melhor corresponde à vida e à história de Jesus, tal como chegou até nós, é o do deus egípcio Osíris, consorte de ÍSIS. Tradicionalmente, ele era morto numa sexta-feira e ressuscitava três dias depois. E há indicações de que, nos primeiros tempos do cristianismo, o título «Christos» se confundiu com outra palavra grega, «Chrestos», que significa afável ou bondoso. Mas «Chrestos» era um dos epítetos tradicionais de Osíris – e, curiosamente, existe também uma inscrição em Delos dedicada a «Chreste ÍSIS». O grito de Jesus, na cruz, é também susceptível duma interpretação pagã.
A versão de Marcos, «eloi, eloi!», e a de Mateus, «eli, eli!», são traduzidas como «Meu Deus! Meu Deus! [Por que me abandonaste?]», embora a história registre que algumas das pessoas presentes interpretaram mal a palavra e pensaram que Jesus invocava o profeta Elias, o qual o próprio Jesus associara especificamente a João Batista. Mas, em aramaico, «Meu Deus» deveria ter sido ilahi. Desmond Stewart sugere que a palavra era, de fato, Hélios – o nome do deus-sol, o que é particularmente interessante porque o grito estava associado ao período anômalo de escuridão, ao meio-dia. De fato, segundo um dos mais antigos manuscritos conhecidos do Novo Testamento, os circunstantes pensaram que ele clamava por Hélios, cujo culto – generalizado na Síria até ao século IV – foi cristianizado com a substituição do nome Elias. E, obviamente, um deus-sol é a quinta-essência da morte e ressurreição cíclicas.
Assim, podemos verificar que Jesus se harmoniza facilmente com a tradição do deus-que- morre, mas este arquétipo não constitui o quadro completo dos antigos mistérios. O deus – Osíris, Tamuz, Atis, Dionísio ou qualquer dos outros – estava inevitavelmente associado à sua consorte, a deusa, que desempenhava, usualmente, o principal papel do drama da sua ressurreição. Como sugere Geoffrey Ashe:
Sempre o deus-companheiro era o trágico e condenado amante da deusa, o qual morria anualmente com a vegetação da natureza e renascia na Primavera…
Era evidente que, se Jesus estivesse realmente a cumprir uma tradição do «Deus Morto», aparentemente havia alguma coisa que não estava presente. Como continua a expor Geoffrey Ashe:
No seu papel de salvador morto-e-ressuscitado, não era fácil compreender que estivesse sozinho. Normalmente, estes deuses nunca estiveram sós… Era impossível imaginar Osíris sem Ísis ou Átis sem Cibele.
Os críticos podem alegar que, porque Jesus não tinha uma figura de deusa-companheira, não podia ter estado a representar o papel de um deus-que-morre. Ele era, como dizem, único na sua verdadeira divindade e não tinha necessidade de que uma mulher a compartilhasse com ele. Mas… e se ele tivesse uma companheira? E é evidente que teve, e é esta informação que tem sido acalentada, em segredo, por gerações «de heréticos». A ÍSIS de Jesus era Maria Madalena.
Continua …