No brilhante e abrangente estudo Hamlet’s Mill, os professores Santillana e Von Dechend apresentam um conjunto formidável de evidência mítica e iconográfica para demonstrar a existência de um fenômeno curioso. Por alguma razão inexplicável, e em alguma data desconhecida, parece que certos mitos arcaicos de todo o mundo foram “cooptados” (nenhuma outra palavra seria mais apropriada) para servir como veículos de um conjunto de dados técnicos complexos relativos à precessão dos equinócios. A importância dessa espantosa tese, como uma destacada autoridade em medições antigas observou, foi ter disparado a primeira salva no que talvez venha a ser “uma revolução copernicana nas concepções (a “erudição acadêmica”) correntes sobre o desenvolvimento da cultura humana”.
Por Graham Hancock, tradução de Ruy Jungmann, editora Record 2001.
CAPÍTULO 30 – A Árvore Cósmica e o Moinho dos Deuses
O livro Hamlet’s Mill: An Essay Investigating the Origins of Human Knowledge And Its Transmission Through Myth foi publicado em 1969, há quase cinquenta anos, de modo que a revolução demorou muito a acontecer. Durante esse período, o livro nem foi muito lido pelo público em geral nem muito compreendido por estudiosos do passado remoto. Esse estado de coisas, note-se, não aconteceu devido a quaisquer problemas ou fraquezas inerentes ao livro.
Em vez disso, nas palavras de Martin Bernal, professor de estudos governamentais da Universidade Cornell, aconteceu, sim, porque “poucos arqueólogos, egiptólogos e historiadores dos tempos antigos reuniam a combinação de tempo, trabalho e perícia necessários para entender os argumentos sumamente técnicos de Santillana”. Esses argumentos tratam predominantemente da transmissão repetida e recorrente de uma “mensagem sobre a precessão dos equinócios” em uma grande faixa de mitos antigos. E, curiosamente, muitas das principais imagens e símbolos que surgem nesses mitos – notadamente as que dizem respeito a um “enlouquecimento dos céus” – foram encontrados também inseridos nas tradições antigas de cataclismo, de âmbito mundial, que passamos em revista nos Capítulos 24 e 25.
Na mitologia escandinava (Vikings), por exemplo, vimos que o lobo Fenrir, que os deuses haviam acorrentado com todo cuidado, quebrou finalmente as correntes e fugiu:
“Ele se sacudiu e o mundo tremeu. O freixo (árvore) Yggdrasil foi abalado das raizes até os ramos mais altos. Montanhas desmoronaram ou foram fendidas de cima a baixo. (…) A Terra começou a perder sua forma. As estrelas já começavam a perder o seu rumo no céu.”
Na opinião de Santillana e Von Dechend, esse mito mistura o tema conhecido da catástrofe com o tema inteiramente separado da precessão dos equinócios. Por um lado, temos um desastre na terra em uma escala que parece tornar café pequeno até o dilúvio de Noé. Por outro, ouvimos falar em aziagas mudanças que estão ocorrendo nos céus e que as estrelas, que perderam o rumo no céu, estão “caindo no abismo”.
Essa imagística celeste, repetida inúmeras vezes, com variações relativamente pequenas, em mitos originários de muitas diferentes partes do mundo, pertence a uma categoria classificada no Hamlet’s Mill como “não apenas um simples ato de contar história, do tipo da que ocorre naturalmente”. Além disso, as tradições escandinavas que falam do monstruoso lobo Fenrir e do abalo sofrido por Iggdrasil relatam também o apocalipse final, no qual as forças do Valhalla formam no lado da “ordem” para participar da última e terrível batalha dos deuses – uma batalha que termina em destruição apocalíptica:
Quinhentas e quarenta portas são Abertas nas muralhas do Valhalla; Oitocentos guerreiros por cada porta passam, E para a guerra contra o Lobo vão.
Com uma leveza de toque quase subliminar, essa estrofe estimulou-nos a contar os guerreiros do Valhalla, obrigando-nos, momentaneamente, a focalizar a atenção em seu número total (540 x 800 = 432.000). Esse total, como veremos no Capítulo 31, está matematicamente ligado ao fenômeno da precessão dos equinócios, ao tempo de duração de uma idade (um Yuga) da cultura veda da Índia (o período de duração do Kali Yuga, a idade do Ferro, que dura exatos 432 mil anos).
{Excerto do post: Fim do Kali-Yuga, a Era da degradação, a vinda do Kalki Avatar
De acordo com a crença hindu, o tempo universal é composto de quatro grandes períodos, ou Yugas (Eras):
- Satya-yuga, com 1.728.000 anos de duração, o ser humano viveria em torno de 100 mil anos e com estatura de cerca de 10,5 metros de altura, a sabedoria domina a criação;
- Treta-yuga, com 1.296.000 anos de duração. Os seres humanos ficam ligeiramente menores em comparação com seus predecessores da era Satya-yuga. A agricultura, trabalho e mineração tornam-se existentes. A duração média da vida dos seres humanos é de cerca de 1.000 a 10.000 anos e a altura atinge até 7 metros.
- Dvapara-yuga, com duração de 864.000 anos. Dvapara significa “dois pares” ou “depois de dois”, é quando surgem os dois gêneros, “quando Eva é retirada de Adão”. Nesta era, as pessoas ficam contaminadas com qualidades tamásicas e não são tão fortes quanto seus antepassados. As doenças tornam-se desenfreadas. Os seres humanos estão descontentes e lutam uns contra os outros, surgem as guerras. Os Vedas são divididos em quatro partes. As pessoas ainda possuem características de juventude na velhice. a vida média dos seres humanos decresce novamente e fica em torno de apenas poucos séculos com sua estatura agora menor, em torno de 3,5 metros.
- Kali-yuga (Idade do Ferro). Sua duração é de 432 mil anos. É a era final de todo o grande ciclo. É a era das trevas e da ignorância, da luxúria e da permissiviade. As pessoas se tornam corruptas e pecadoras e carecem de virtudes. Todos se tornam escravos de suas paixões, da lascívia, luxúria, e são quase animais em comparação aos seus antepassados mais antigos no Satya Yuga. A sociedade cai em desordem e as pessoas se tornam mentirosas, imbecilizadas e hipócritas. O conhecimento e a sabedoria se perde e as escrituras são destruídas. Os seres humanos comem comida proibida e contaminada e se envolvem em práticas sexuais pecaminosas sem nenhuma restrição. O ambiente é altamente poluído, a água e os alimentos tornam-se escassos, a natureza (o FEMININO) é completamente degradada. A abundância é fortemente diminuída. As famílias tornam-se inexistentes. O período da vida média das pessoas é de apenas 80 anos (em raras exceções) em meio a uma série de doenças, e a estatura média é de apenas 1,75 metros, até o final do Yuga.
Atualmente, os seres humanos estão vivendo o período final dos últimos 5.125 anos do atual Kali-yuga, cujo período total é de 432 mil anos, ciclo que se iniciou em torno de cerca de 429.988 a.C. anos. Este período final de 5.125 anos começou após a batalha de Kuruksetra (3.113 a.C.) durante o fim do reinado do rei Pariksit.Fim de citação}
É improvável que tenha aberto caminho por acaso para a mitologia escandinava, especialmente em um contexto que havia antes especificado “uma loucura nos céus” suficientemente grave para fazer com que as estrelas perdessem o rumo, deixando suas posições habituais no firmamento. Para entender o que está acontecendo, é essencial apreender a imagística básica da antiga “mensagem”, que Santillana e Von Dechend alegam ter descoberto por acaso. Essa imagística transforma o domo luminoso da esfera celeste em uma enorme e complicada peça de maquinaria astronômica. E, tal como uma roda de monjolo (moinho=mill), um vórtice, uma batedeira, um moinho de mão, essa máquina gira, gira, gira interminavelmente (com seus movimentos calibrados o tempo todo pelo sol, que nasce primeiro em uma constelação do zodíaco, em seguida em outra, e assim por diante, durante todo o ano cósmico).
Os quatro pontos principais do ano são os equinócios da primavera e outono e os solstícios do inverno e verão. Em cada ponto, naturalmente, vê-se o sol nascer em uma constelação diferente (assim, se o sol nasce em Peixes no equinócio de primavera, como acontece no presente, ele terá de nascer em Virgem no equinócio de outono, em Gêmeos no solstício de inverno e em Sagitário no solstício de verão). Em cada uma dessas quatro ocasiões, pelo menos nos últimos 2.000 anos, ou por aí, foi exatamente isso o que o sol andou fazendo. Conforme vimos antes, contudo, a precessão dos equinócios significa que o ponto vernal mudará, em futuro não muito distante, de Peixes para Aquário.
Quando isso acontecer, as três outras constelações que marcam os três pontos principais mudarão também, de Virgem, Gêmeos e Sagitário para Leão, Touro e Escorpião quase como se um mecanismo gigantesco do céu tivesse majestosamente mudado de marcha… Tal como o eixo de roda de um moinho, explicam Santillana e Von Dechend, Yggdrasil “representa o eixo do mundo” na linguagem científica arcaica que identificaram: um eixo que se estende para fora (para o observador que se encontra no hemisfério Norte) e para o pólo Norte da esfera celeste:
Isso sugere instintivamente um poste reto, vertical (…) mas seria simplificar demais. No contexto mítico, é melhor não pensar no eixo em termos analíticos, em uma linha de cada vez, mas considerá-lo no marco de referência ao qual está ligado como um todo. (…) Da mesma maneira que o raio lembra automaticamente o círculo, o eixo, da mesma maneira, deve invocar os dois grandes círculos determinantes na superfície da esfera, os coluros equinocial e solsticial.
Esses coluros são os aros imaginários, cruzando-se no pólo Norte celeste, que ligam os dois pontos equinociais na trajetória da terra em volta do sol (isto é, o ponto equinocial em que ela se encontra nos dias 20 de março e 22 de setembro) e os dois pontos solsticiais (onde se situa nos dias 21 de junho e 21 de dezembro). A implicação é que “a
rotação do eixo polar não deve ser separada dos grandes círculos que mudam juntamente com ele. A estrutura é concebida como idêntica ao eixo”. Santillana e Von Dechend estão certos de que o que temos aqui não é uma crença, mas uma alegoria. Insistem em que a idéia de uma estrutura esférica composta de dois aros que se cortam, suspensa de um eixo, não deve, em circunsdncia alguma, ser entendida como a maneira como a antiga ciência concebia o cosmo. Em vez disso, deve ser considerada como um “instrumental para o pensamento”, destinado a focalizar a mente de pessoas suficientemente inteligentes para decifrar o código do fato astronômico, difícil de detectar, da precessão dos equinócios. É um instrumental para o pensamento que continua a aflorar, em numerosos disfarces, em todos os mitos do mundo antigo.
No Moinho com Escravos
Um exemplo, desta vez da América Central (que fornece, além disso, mais uma ilustração das curiosas “permutações” simbólicas entre mitos de precessão e mitos de catástrofe), foi sumariado no século XVI por Diego de Landa:
Entre a grande multidão de deuses adorados por esse povo (o maia) havia quatro conhecidos pelo nome de Bacab. Eles eram, dizem, quatro irmãos colocados por Deus, quando criou o mundo, nos seus quatro cantos para sustentar o céu e evitar que ele caísse. Dizem também que esses Bacabs fugiram quando o mundo foi destruido por um dilúvio.
Santillana e Von Dechend pensam que os astrônomos-sacerdotes maias não aceitavam nem por um momento a idéia simplista de que a Terra era plana e que tinha quatro cantos. Em vez disso, dizem nossos autores, a imagem dos quatro Bacabs foi usada como uma alegoria técnica, destinada a lançar luz no fenômeno da precessão dos equinócios. Os Bacabs, em resumo, representavam o sistema de coordenadas de uma era astronômica. Ou seja, representavam os coluros equinociais e solsticiais, ligando as quatro constelações nas quais o sol continuava a nascer nos equinócios da primavera e outono e nos solstícios de inverno e verão durante pouco mais de 2.000 anos. Claro, era entendido que quando ocorriam mudanças de marcha do céu, a antiga Era astronômica desmoronava e uma nova era nascia.
Tudo isso, até agora, é imagística de rotina no caso das precessões. O que sobressai, no entanto, é a ligação explícita com uma catástrofe terrena – neste caso, uma inundação – à qual os Bacabs sobrevivem. Talvez seja também relevante que altos-relevos encontrados em Chichen Itza representem inconfundivelmente os Bacabs como homens barbudos e de aparência européia. Seja o que for, a imagem dos Bacabs (ligados a certo número de referências mal compreendidas aos “quatro cantos do céu”, à “terra quadrangular”, e assim por diante) é apenas uma entre muitas que parecem ter sido concebidas para servir como instrumental de pensamento para entender a precessão. Arquetípica entre elas, claro, há o “moinho” (Mill) do título do livro de Santillana – Hamlet’s Mill.
Descobre-se que o personagem de Shakespeare, “do qual o poeta fez um de nós, o primeiro intelectual infeliz”, esconde um passado, como ser lendário, suas feições predeterminadas, preformadas por um mito muito antigo. O Amlodhi original (ou, às vezes, Amleth), o nome que tinha na lenda islandesa, “demonstra as mesmas características de melancolia e fino intelecto. Ele também era um filho decidido a vingar o pai, um expositor de verdades crípticas, mas incontestáveis, um vetor esquivo do Destino, que sairia de cena tão logo realizada sua missão…” Na imagística rude e vívida dos escandinavos, Amlodhi era apresentado como dono de um famoso moinho, ou azenha, que, alternadamente, moía ouro, paz e prosperidade. Em muitas das tradições, duas donzelas gigantes (Fenja e Menja) foram admitidas para trabalhar por prazo fixo, acionando essa grande engenhoca, que não podia ser mudada do lugar por nenhuma força humana. Alguma coisa deu errado e as duas gigantes foram obrigadas a trabalhar dia e noite, sem descanso:
Para a bancada do moinho foram trazidas, Para pôr em movimento a cinzenta mó; Nem descanso nem paz ele lhes dava, Atento ao rangido do moinho. O canto delas era um uivo, Despedaçando o silêncio “Abaixem a tulha, aliviem as pedras!” Mas ele as obrigava a moer ainda mais.
Rebeladas e enfurecidas, Fenja e Menja esperaram até que todos foram dormir e, em seguida, começaram a imprimir ao moinho um giro louco, até que seus grandes suportes, embora revestidos de ferro, se quebraram em dois. Imediatamente depois, em um episódio confuso, o moinho foi roubado por um rei do mar chamado Mysinger e levado para seu navio, juntamente com as gigantes. Mysinger ordenou à dupla que voltasse a moer, mas, desta vez, sal. À meia-noite, elas lhe perguntaram se ele não estava cansado de tanto sal. Ele lhes ordenou que voltassem a moer. Elas continuaram a trabalhar, mas, pouco tempo depois, quando afundou o navio:
Os enormes suportes soltaram-se da tulha, Os rebites de ferro quebraram-se com estrondo, A árvore do eixo tremeu, E a tulha mergulhou no mar. Ao chegar ao fundo do mar, o moinho continuou a girar, mas moía rocha e areia, criando um imenso vórtice, o Maelstrom.
Essas imagens, afirmam Santillana e Von Dechend, significam a precessão dos equinócios. O eixo e os “suportes de ferro” do moinho serviam como um sistema de coordenadas na esfera celeste e representavam o contexto de uma era astronômica do mundo. Na verdade, o contexto define uma era do mundo. Uma vez que o eixo polar e os coluros formam um todo invisível, o contexto, no todo, torna-se defeituoso se uma parte é movida. Quando isso acontece, uma nova estrela Polar (que indica o norte), com seus apropriados coluros, tem que substituir o aparelho obsoleto. Além do mais, o vórtice que a tudo engolia pertence à matéria habitual da fábula antiga.
Ela aparece na Odisséia como Caribde no estreito de Messina, e repetidamente em outras culturas no oceano índico e no Pacífico. É lá encontrada, curiosamente, como uma alta figueira, a cujos galhos o herói pode se agarrar enquanto o navio afunda, seja o Satyavrata na Índia, ou o Kae, em Tonga. (…) A repetição dos detalhes exclui livre invenção. Essas histórias devem ter pertencido à literatura cosmográfica desde a antiguidade. O aparecimento de um sorvedouro na Odisséia, de Homero (que é uma compilação de mitos gregos já velhos de mais de 3.000 anos) não deveria nos surpreender, porque o grande Moinho da lenda islandesa nele aparece, também (o que acontece, além do mais, em circunstâncias conhecidas). Acontece na última noite antes da confrontação final. Ulisses, disposto a se vingar, desembarca em Ítaca e está escondido sob o encantamento mágico da deusa Atena, que o protege para que não seja reconhecido. Ulisses reza a Deus, pedindo-lhe que lhe envie um sinal encorajador, antes da grande provação:
Imediatamente, Zeus trovejou do alto do refulgente Olimpo (…) e o puro Ulisses ficou feliz. Além disso, uma mulher, uma trabalhadora do moinho, pronunciou palavras de augúrio dentro de uma casa próxima, onde ficavam os moinhos do pastor do povo.
Nesses três moinhos manuais, vinte mulheres ao todo trabalhavam, fazendo, de refeições de cevada e trigo, o tutano dos ossos dos homens. Nesse momento, todos as outras dormiam, porque haviam moído sua quota de grão, mas só essa não fora repousar ainda, sendo a mais fraca de todas. Nesse instante, parou sua rainha e pronunciou a palavra:
“Que os [inimigos de Ulisses] neste dia, pela última vez, banqueteiem-se e se regozijem em seus agradáveis salões. Eles me amoleceram os joelhos com o cruel trabalho de lhe moer a refeição de cevada e que agora se sirvam da última!”
Santillana e Von Dechend argumentam que não é por acaso que a alegoria do “orbe do céu que gira como uma pedra de moinho e sempre faz alguma coisa má” também faça seu aparecimento na tradição bíblica de Sansão, “cego em Gaza, no moinho, com os escravos”. Seus captores implacáveis amarram-no para que “os divirta” no templo. Em vez disso, com seus últimos restos de força, ele segura os pilares do meio da grande estrutura e provoca o desmoronamento de todo o edifício, matando todos que ali estão. Como Fenja e Menja, ele também tira sua vingança.
O tema ressurge no Japão, na América Central, entre os maoris da Nova Zelândia e nos mitos da Finlândia. Neste último caso, a figura de Hamlet/Sansão é conhecida como Kullervo e o moinho tem um nome estranho: o Sampo. Como o moinho de Fenja e Menja, acaba por ser roubado e posto em um navio. E como o moinho das duas, termina reduzido a pedaços. Acontece que a palavra “Sampo” tem suas origens na skambha, palavra sânscrita que significa “pilar ou mastro”. E, no Atharvaveda, uma das peças mais antigas da literatura do norte da Índia, encontramos um hino inteiro dedicado a Skambha:
Na terra, na atmosfera de quem, no céu de quem ela se encontra, onde estão o fogo, a Lua, o Sol, o vento? (…) O Skambha sustenta o céu e a terra; o Skambha sustenta a larga atmosfera; o Skambha sustenta as seis largas direções; o Skambha penetra em toda existência.
Whimey, o tradutor (Atharvaveda, 10:7), comenta com certa perplexidade: “O Skambha, iluminação, escora, apoio, pilar, é estranhamente usado neste hino como contexto do universo.” Ainda assim, se compreendemos o complexo de idéias que ligam moinhos cósmicos, vórtices, árvores do mundo e assim por diante, o arcaico uso védico não deve parecer tão estranho assim. O que está sendo sugerido nesse caso, como em todas as demais alegorias, é a estrutura de uma era mundial – o mesmo mecanismo celeste que gira há mais de 2.000 anos, com o sol nascendo sempre nos mesmos quatro pontos cardeais nos equinócios e solstícios e, em seguida, mudando lentamente essas coordenadas para quatro novas constelações, onde ficará nos próximos dois mil anos. Esse o motivo por que o moinho sempre quebra, porque as imensas escoras sempre se soltam de uma maneira ou de outra, porque os rebites de ferro explodem, porque o tronco da árvore treme. A precessão dos equinócios merece essa imagística porque, a intervalos muito separados do tempo, ela realmente muda, ou rompe, as coordenadas estabilizadoras de toda a esfera celeste.
Desbravadores do Caminho
O notável em tudo isso é a maneira como o moinho (que continua a servir como alegoria de processos cósmicos) continua a aflorar teimosamente, mesmo nos casos em que o contexto entrou em desordem ou se perdeu. Na verdade, no argumento de Santillana e Von Dechend não importa realmente se o contexto se perde. “O mérito particular da terminologia mítica”, dizem, “é que ela pode ser usada como veículo para transmitir sólidos conhecimentos, independentemente do grau de insight dos indivíduos que se encarregam de contar as histórias, fábulas etc.” O que importa, em outras palavras, é que certa fantasia central sobreviva e continue a ser transmitida todas as vezes em que a história é contada, por mais que elas possam se afastar da linha narrativa original. Um exemplo desse desvio (juntamente com a retenção das imagens e informações essenciais) é encontrado entre os cherokees, cujo nome para a Via Láctea (nossa galáxia) é “Lugar por onde o cão correu”.
Em tempos antigos, de acordo com a tradição dos cherokees, “o povo no Sul tinha um moinho de milho”, do qual farinha era repetidamente roubada. No devido tempo, os donos descobriram o larápio, um cão, “que fugiu correndo e ganindo para sua casa no Norte, com a farinha pingando da boca, enquanto ele corria, deixando atrás uma trilha branca onde hoje vemos a Via Láctea, que os cherokees até estes dias chamam de “Lugar por onde o cão correu”. Na América Central, um dos muitos mitos sobre Quetzalcoatl mostra-o desempenhando um papel decisivo na regeneração da humanidade, após o dilúvio arrasador que acabou com o Quarto Sol. Juntamente com seu companheiro de cabeça de cão, Xolotl, ele desceu ao inferno para recuperar os esqueletos das pessoas mortas no dilúvio. Consegue fazer isso depois de enganar Miclatechuhtli, o deus da morte, e os ossos são levados para um lugar chamado Tamoanchan. Aí, como se fosse milho, os ossos são moídos em uma mó, transformados em fina farinha.
Sobre essa farinha moída, os deuses vertem em seguida sangue, criando dessa maneira a carne da presente era de homens. Santillana e Von Dechend recusam-se a pensar que a presença de um personagem canino nas duas variantes acima do mito do moinho cósmico seja acidental. Lembram que Kullervo, o Hamlet finlandês, tinha também a companhia do “cão negro Musti”. De igual maneira, após voltar às suas propriedades em Ítaca, Ulisses é inicialmente reconhecido pelo seu fiel cão e, como se lembrarão todos os que freqüentaram uma escola dominical, Sansão aparece ligado a raposas (300 delas, para sermos exatos), que são membros da família dos cães. Na versão dinamarquesa da saga Amleth/Hamlet, “Amleth prosseguiu em sua viagem e um lobo cruzou seu caminho no meio do bosque”. Por último, mas não menos importante, em uma versão revista da história de Kullervo, de origem finlandesa, o herói (de forma muito estranha) é “enviado à Estônia para latir embaixo de uma cerca. Ele latiu durante um ano (…)”. Santillana e Von Dechend têm certeza de que toda essa “cachorrice” é intencional, outra peça de um código antigo, mas ainda não decifrado, persistentemente digitando sua mensagem de um lugar a outro.
Eles listam esses e numerosos outros símbolos caninos, entre uma série de “indicadores morfológicos”, que identificaram com probabilidade de sugerir a presença, em mitos antigos, de informações científicas relativas à precessão dos equinócios. Esses indicadores podem ter possuído significados próprios ou ter sido criados para alertar a platéia-alvo de que um conjunto de dados sérios vai surgir na história que está sendo contada. Com intenção de enganar, podem ter sido também concebidos para servir como “desbravadores do caminho” – como conduítes para permitir aos “iniciados” seguir a trilha da informação científica de um mito a outro.
Dessa maneira, mesmo que nenhum dos conhecidos moinhos e vórtices esteja à vista, devemos talvez prestar atenção quando somos informados de que (a constelação de) Órion, o grande caçador do mito grego, possuía um cão (a constelação do Cão Maior {Canis Major}). Quando ele tentou violentar a deusa virgem Ártemis, ela tirou da terra um escorpião que o matou e, também, o cão. Órion foi transportado para o céu, onde se tornou a constelação que hoje tem seu nome, sendo o cão transformado em Sírius, a estrela principal (Alpha) da constelação de Canis Major. Exatamente a mesma identificação de Sírius foi feita pelos antigos egípcios, que ligaram a constelação de Órion especificamente ao deus Osíris. Foi no Egito antigo, igualmente, que o caráter do fiel cão celeste recebeu seu mais completo e mais explícito refinamento mítico, sob a forma de Upuaut, uma divindade com cabeça de chacal, cujo nome significa “Desbravador dos Caminhos”.
Se seguimos esse desbravador de caminhos ao Egito, viramos os olhos para a constelação de Órion e entramos no poderoso mito de Osíris, descobrimos que estamos envolvidos em uma teia de símbolos astronômicos conhecidos. O leitor deve lembrar-se de que o mito apresenta Osíris como vítima de uma conspiração. Os conspiradores livraram-se dele fechando-o dentro de um caixão e jogando-a à deriva nas águas do Nilo. Neste particular, não lembra ele Utnapishtim, Noé, Coxcoxtli e todos os outros heróis do dilúvio em suas arcas (ou caixas, ou cofres) flutuando nas águas da grande inundação?
Outro elemento conhecido é a imagem clássica da precessão do mundo-árvore e/ou telhado-pilar (neste caso, combinados). O mito nos diz que Osíris, ainda preso no interior do caixão, foi levado para o mar e que deu à praia em Biblos (Fenícia). As ondas depositaram-no entre os ramos de uma árvore, uma tamargueira, que cresceu rapidamente e adquiriu um tamanho majestoso, fechando o caixão no interior do seu tronco. O rei do país, que admirava muito as tamargueiras, derruba-a e transforma a parte que contém Osíris no pilar de sustentação do telhado de seu palácio. Mais tarde, ÍSIS, a esposa de Osíris, tira o corpo do marido de dentro do pilar e leva-o para o Egito, onde ele renascerá. O mito de Osíris inclui também certos números decisivos. Seja por “acaso” ou intenção, esses números permitem acesso a uma espécie de “ciência” da precessão dos equinócios, conforme veremos no capítulo seguinte.