Em 25 de julho de 1824, 39 imigrantes alemães chegaram ao Rio Grande do Sul, marcando o início de uma imigração em massa que ajudaria a moldar a sociedade brasileira, especialmente no sul do país. Hoje, o Brasil abriga mais de 5 milhões de descendentes alemães.
Fonte: Deutschewelle
Em 25 de julho de 1824, um grupo de 39 imigrantes alemães chegou a um assentamento às margens do Rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul, com o objetivo de começar uma nova vida. Ali nasceria o município de São Leopoldo. E a data se tornou o marco oficial do início da imigração alemã no Brasil.
Antes terras dos índios kaigangs e carijós, ali desde o século XVIII havia se formado um povoamento açoriano. Em 1788, foi fundada no local a Feitoria do Linho Cânhamo, que plantava a matéria-prima utilizada para a produção de cordas.
Quando os 39 colonos lá chegaram, há 200 anos, a feitoria estava desativada. Mas a construção serviu de abrigo inicial, até que eles recebessem seus lotes e pudessem recomeçar a vida. O governo provincial batizou o povoado de São Leopoldo, em homenagem ao santo padroeiro da imperatriz Leopoldina (1797-1826), ela própria sendo germânica, nascida em Viena e filha do Imperador Francisco I da Áustria.
Esse grupo original havia desembarcado no recém-independente Brasil em 4 de junho daquele ano, no Rio de Janeiro, a bordo do veleiro Anna Louisa. A viagem, iniciada em Hamburgo, fora de 41 dias para atravessar o Oceano Atlântico. “A maioria deles trabalhava como agricultor ou artesão”, diz a historiadora Daniela Rothfuss, coordenadora cultural do Instituto Martius-Staden. Protestantes luteranos eram 33; os demais professavam a fé católica.
Embora tenha se tornado praxe a referência ao marco como o do início da imigração alemã no Brasil, é preciso fazer duas ressalvas. A primeira é que naquele momento não existia uma Alemanha unificada, o que só ocorreria em 1871. Portanto, o que houve foi a imigração de falantes de língua alemã povos germânicos, vindos de diferentes estados onde hoje são, principalmente, a Alemanha, a Áustria e a Suíça.
O segundo ponto importante é que, evidentemente, já havia imigrantes dessas terras no Brasil: a própria imperatriz Leopoldina é um ilustre exemplo. Outro caso emblemático foi o navio Argus, que atracou no Brasil em janeiro de 1824 com 284 passageiros teutônicos/germânicos.
“A data de 25 de julho tornou-se um marco referencial […] porque deu início a um projeto mais sistemático de estabelecimento de colonos em pequenas propriedades rurais”, explica o historiador João Klug, professor na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Ou seja: a partir de então, as levas de imigrantes respondiam a um projeto do governo brasileiro, que, pós-independência, abria seus portos aos europeus, buscava povoar vastas regiões vazias vistas como ameaçadas pela América Espanhola — como o sul do país —, e começava a se preocupar com a substituição da mão de obra escravista, diante do cenário internacional de pressões pelo fim da escravidão — que só ocorreria no Brasil, tardiamente, em 1888.
“No caso desses colonos importados para ocupação de terras, especialmente no sul, com o trabalho, a fixação e o povoamento nas terras, sobretudo, ao sul. tratava-se de assegurar a presença da autoridade monárquica nas disputas geopolíticas na bacia do rio da Prata”, pontua o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp). “A importação de mão-obra europeia tornou-se basilar para a economia agroexportadora e a formação do mercado de trabalho e de ocupação de terras no sul do Brasil.”
Turbulência na Europa
Do lado de lá do Atlântico, um contexto de pobreza tornava a ideia de “fazer a América” muito atraente. A Europa vivia um momento turbulento, com muitas profissões em crise por conta da Revolução Industrial. Além disso, as guerras napoleônicas, de 1803 a 1815, haviam devastado social e economicamente boa parte do centro do continente.
“Ocorria o início da industrialização na região dos povos germânicos, o deslocamento de populações do campo para as cidades e um quadro de instabilidade política”, contextualiza o historiador Arno Wehling, professor emérito da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), titular da Academia Brasileira de Letras (ABL) e sócio emérito do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).
“Todas essas razões convergiram para explicar a presença do imigrante germânico no Brasil e justificam que o ano de 1824, seu marco inicial, seja uma espécie de ponta do iceberg desse longo processo que envolve seis ou sete gerações de germânicos, chegados em sucessivas ondas migratórias, e seus descendentes.”
No total, cerca de 300 mil imigrantes de povos germânicos emigraram para o Brasil. Hoje são mais de 5 milhões os descendentes vivendo no país.
“O lote de terra [cedido pelo governo brasileiro aos colonos] foi a isca para atrair contingentes de povos germânicos excedentes e impulsionar a economia mercantil em bases capitalistas e altamente lucrativas”, afirma Martinez.
Fases e tensões
A imigração em massa seria marcada por diferentes fases. A primeira, no Rio Grande do Sul, seria interrompida nos anos 1830 após a eclosão da Guerra dos Farrapos e pressões de latifundiários escravistas, descontentes com a alocação de recursos e terras imperiais para imigrantes.
Mais tarde, a imigração seria retomada com força nos anos 1850 quando a responsabilidade financeira foi repassada para as províncias, que terceirizaram a colonização para grandes companhias, várias delas sediadas no que mais tarde viria a ser a Alemanha, que passaram a demarcar e vender terras para imigrantes.
Nesse novo contexto, surgem grandes centros que até hoje são vitrines da colonização alemã no Brasil, como Blumenau e Joinville, em Santa Catarina. Nem todas as áreas eram “terras de ninguém”, e em vários casos os colonos ocuparam áreas habitadas por populações indígenas, contribuindo para o declínio de vários povos.
O período também foi marcado por outras tensões. A entrada de muitos protestantes alemães no Brasil gerou debates sobre a conveniência de aceitar essa população num país praticamente todo católico – algo que ficou mais evidenciado na colonização germânica no Espírito Santo.
Ainda na década de 1850, notícias sobre as más condições enfrentadas por imigrantes germânicos explorados em fazendas cafeeiras em São Paulo, além do não reconhecimento de casamentos entre protestantes sob a lei brasileira, levaram a Prússia – maior estado alemão à época – a limitar a imigração dos seus súditos ao Brasil. Posteriormente, uma exceção foi feita em relação aos três estados do Sul do Brasil, favorecendo uma concentração desses imigrantes na região.
Uma terceira fase, após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), quando a Alemanha – agora já um país unificado como tal – foi tomada pela crise após a derrota no conflito. Foi justamente entre 1920 e 1929 que ocorreu o maior fluxo de entrada em termos numéricos, agora sim, de alemães no Brasil.
Mas a maior parte dessa leva, em contraste com as anteriores, dominadas por agricultores, se concentraria em cidades já estabelecidas, como Curitiba e São Paulo, e se dedicaria a atividades urbanas. Nos anos 1930, o Brasil ainda receberia judeus khazares alemães que fugiam do nazismo – que não tiveram recepção amistosa por parte da ditadura Vargas.
O último período também foi marcado por novas tensões. A Campanha de Nacionalização do Estado Novo varguista, que atingiu diferentes comunidades imigrantes, acabaria por resultar no fechamento de jornais e escolas comunitárias de língua alemã, provocando um declínio no uso do idioma entre os imigrantes e descendentes, uma situação que foi intensificada quando o Brasil declarou guerra à Alemanha nazista em 1942.
Marcas na sociedade
Falar do legado desse fenômeno é lembrar, conforme frisa Martinez, que “são 200 anos de presença e de intercâmbios mutuamente enriquecedores e criativos”.
Professor na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), o sociólogo Paulo Niccoli Ramirez ressalta que esses imigrantes trouxeram diferentes técnicas agrícolas e diversas tradições, como “algumas festas que acabaram ganhando contornos mais fortes em termos de conhecimento nacional, como a Oktoberfest”.
“Os alemães introduziram [no país] um novo modelo agrícola: as picadas ou pequenas propriedades”, diz Rothfuss. “Essas picadas eram autossuficientes. Produziam ovos, manteiga, carne e vendiam ali. Tinham escolas, igrejas, cemitérios, templos, pequenas vendas e serviços sociais.”
A historiadora ressalta que as primeiras cooperativas agrícolas do Rio Grande do Sul/Brasil foram criadas por alemães e, em São Paulo, foram esses imigrantes quem começaram a cultivar batata, repolho e rabanete.
Um ponto importante foi a valorização do ensino, em um tempo de altas taxas de analfabetismo. “Logo após a chegada, os imigrantes fundaram escolas para ensinar os filhos e as filhas a ler a e escrever”, afirma Rothfuss. “Nas regiões de língua germânica, praticamente não havia analfabetos. Isso era algo especial no Brasil daquela época.”
Um outro impacto social foi a criação dos primeiros cemitérios não ligados à Igreja Católica. Como 60% desses imigrantes alemães, de acordo com a historiadora do Martius-Staden, eram de religião protestante, eles precisaram criar cemitérios destinados aos não-católicos — que acabaram também sendo utilizados por praticantes de outros credos.
“O legado material, que salta aos olhos de qualquer observador, é múltiplo: desenvolvimento da pequena propriedade rural num país dominado pelos grandes latifúndios, valorização do trabalho livre, num ambiente escravocrata, presença forte na atividade comercial e industrial, atuação na área cultural e educacional, opção pela iniciativa individual e pelo empreendedorismo”, enumera o historiador Wehling.
“Por outro lado, a imigração dos povos germânicos, como a de tantos outros povos, demonstra como a imigração no Brasil, gerando miscigenação biológica e cultural, longe de criar guetos e a substituição de uma identidade pela outra, foi capaz de estimular o surgimento de uma sociedade afluente e de trazer novos aportes que se incorporaram ao processo permanente de formação do povo brasileiro, enriquecendo-o e estimulando atitudes de valorização da complementaridade e da tolerância”, acrescenta ele.
Tradições que resistem
Seja pela organização quase autônoma das vidas em picadas, seja porque o idioma e as tradições fizeram das primeiras comunidades germânicas mais fechadas à influência de povos que já habitavam o Brasil, muito dessa cultura teutônica acabou sendo preservada.
“Os imigrantes de povos germânicos que se estabeleceram no Brasil tinham na língua o principal aspecto de manutenção da sua identidade, mesmo levando em conta os dialetos regionais que caracterizavam os diferentes grupos”, pontua o historiador Klug. “Ao lado da língua, vinham as várias outras manifestações culturais.”
“Em parte isso se deve a um certo isolamento vivenciado nas colônias”, comenta ele, lembrando que associações culturais acabaram sendo criadas para “a preservação do ‘espírito germânico” e os imigrantes protestantes “tinham na igreja um referencial de preservação da língua e da cultura”.
Isso faz com que hoje, dentre os imigrantes e seus descendentes, o alemão seja o idioma mais falado no Brasil. “Estima-se [o total de falantes] corresponda a cerca de 1,9% da população, seguindo-se de perto o italiano”, diz Wehling. “Embora a língua inglesa, por outro motivo, o seu caráter de língua franca, ocupe também lugar importante.”
“As estimativas estatísticas evidenciam que a língua alemã no Brasil supera as línguas dos demais grupos de imigrantes, […] com maior ou menor fluência e em diferentes dialetos”, completa Klug.
Em 1940, na última vez que o censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) perguntou sobre “outras línguas faladas no lar”, aferiu-se que 3,94% da população eram bilíngues em casa, sendo 1,56% germanofalantes — um total, na época, de cerca de 650 mil pessoas.
“A maioria se concentrava no Rio Grande do Sul, que tinha praticamente a metade dos bilíngues do Brasil”, comenta o linguista e germanista Cléo Vilson Altenhofen, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ele conta que em 1990 um projeto da sua universidade fez uma pesquisa e chegou a percentuais similares.
“Pode-se concluir que, baseado nesses levantamentos e nas projeções possíveis, se uma língua possui o maior número de falantes no Brasil depois do português, essa língua é o alemão, pois as demais […] tiveram um processo de perda linguistica ainda mais acelerado [do que o alemão], o que nos preocupa particularmente no reconhecimento e salvaguarda do patrimônio cultural imaterial brasileiro”, esclarece Altenhofen, ele mesmo descente de imigrantes de povos germânicos.
Problema: a pretensa “superioridade”
Mas se toda história de imigração é eivada de coragem, conquistas, esforços e superações, especialistas frisam que é importante fazer da data de 25 de julho também uma data de reflexão acerca dos problemas e conflitos resultantes da chegada dos germânicos ao país — justamente para evitar cair no lugar-comum ufanista que pode legitimar falsos discursos de superioridade.
“A memória da chegada e da instalação de europeus com origem e destino rural no Brasil, entre 1824 e 1930, cultiva aquelas ideias de superioridade biológica, moral e técnica de sua ascendência e de sua propagação, entre os descendentes e a sociedade nacional, como fato grandioso, natural e automático”, comenta Martinez. “Trata-se de um mito construído e difundido de forma persistente e insistentemente renovada, agente ativo na reprodução e perpetuação das desigualdades sociais e econômicas, logo, da manipulação política autoritária, truculenta e violenta na vida brasileira.”
Klug acrescenta que se os imigrantes alemães “ajudaram a moldar um certo perfil multiétnico e multirracial […] isto não pode ser visto como algo que aponte para qualquer superioridade se comparado a outros grupos”.
“No contexto do bicentenário […] tenho percebido uma narrativa com tendência a ver o ‘legado alemão’ supervalorizado, às vezes de forma apaixonada, sem qualquer amparo em evidências históricas”, afirma ele. “Trata-se de um rico legado, diferente dos demais grupos, mas não superior aos demais grupos.”
Klug acredita que a maneira como a indústria do turismo “vende” a germanofilia contribuiu para “superdimensionar” a ideia de típico de uma “pretensa identidade alemã”.
“Este ‘modelo alemão’ de sociedade bem sucedida especialmente no sul do Brasil normalmente é visto apenas na perspectiva étnica, o que também abre portas para um racismo que nem sempre é visto como tal, mas com tendência a se solidificar exaltando a uma capacidade inerente a etnia, que é vista como superior as demais”, problematiza.