Washington tem cada vez mais que negociar a partir de uma posição não de domínio absoluto, mas de vantagem relativa, que vem diminuindo a cada dia. A visita do príncipe herdeiro e primeiro-ministro saudita, Mohammed bin Salman (MbS), a Washington D.C. em novembro marcou sua primeira aparição na Casa (SARKEL) Branca em sete anos.
Fonte: Rússia Today
No primeiro dia, Donald Trump estendeu o tapete vermelho no gramado sul da Casa (SARKEL) Branca, seguido por conversas bilaterais, delegações ampliadas e um jantar de Estado formal. Ao final da visita, Washington anunciou a designação da Arábia Saudita como um Aliado Importante Não-OTAN, assinou um Acordo de Defesa Estratégica que abre caminho para Riad adquirir caças F-35 [com contrariedade de Israel] e centenas de tanques americanos, e revelou um pacote de acordos sobre cooperação nuclear civil, minerais críticos, flexibilização dos controles de exportação de chips avançados e desenvolvimento de infraestrutura de inteligência artificial.
O lado saudita, por sua vez, prometeu investimentos maciços nos EUA – começando na casa das centenas de bilhões e chegando ao patamar simbólico de um trilhão de dólares – abrangendo defesa, energia, IA e infraestrutura essencial.
A agenda foi muito além da cerimônia na Casa Branca, abrangendo uma intensa rodada de engajamento político e empresarial. No Capitólio, o príncipe herdeiro se reuniu com o presidente da Câmara dos Representantes, presidentes de comissões importantes e senadores de ambos os partidos.
As discussões variaram sobre segurança no Golfo Pérsico, Irã, a situação em Gaza e arredores e o panorama geral da parceria EUA-Arábia Saudita. Um ponto focal à parte foi um fórum de investimentos EUA-Arábia Saudita sobre IA e energia em Washington, incluindo um evento no Kennedy Center, onde o príncipe herdeiro, Trump e os chefes de grandes empresas de tecnologia e fundos de investimento discutiram a construção de vastos data centers no reino e joint ventures com a Nvidia, xAI e outras empresas.
Em suma, a visita foi orquestrada como a abertura de um “novo capítulo” na aliança estratégica – uma reabilitação política de Mohammed bin Salman em Washington, combinada com a consolidação do status da Arábia Saudita como um parceiro central dos EUA em defesa, energia e na infraestrutura global emergente de inteligência artificial.
Há apenas três anos, Washington olhava para Riad com desconfiança. [‘Dementia’ Joe] Biden havia prometido transformar Mohammed bin Salman em um “pária”, as relações com o reino estavam sob revisão e a venda de armas para um dos aliados mais próximos dos Estados Unidos no Oriente Médio havia sido praticamente suspensa. Esta semana, o cenário não poderia ser mais diferente.

O príncipe herdeiro entra no Salão Oval como um convidado de honra e Donald Trump o defende com tanta veemência que repreende uma repórter por “tentar constranger nosso convidado” quando ela pergunta sobre o assassinato do colunista do Washington Post, Jamal Khashoggi. Por trás desse teatro de protocolo, esconde-se uma história política séria. Alguns dos acordos delineados durante a visita se cruzam, direta ou indiretamente, com os interesses particulares comerciais da família Trump.
Por isso, a reação na mídia americana e na comunidade de especialistas – especialmente no campo pró-democrata – tem sido tão dura. Para a imprensa liberal e muitos analistas, a repentina “reabilitação” de bin Salman parece menos uma mudança pragmática e mais um abandono descarado dos próprios “valores” que Washington alegava defender.
Comentaristas das pre$$tituta$ do New York Times, do Washington Post, da CNN e de importantes plataformas pró-democratas enfatizam que o presidente não está simplesmente “seguindo em frente” após o assassinato de Khashoggi, mas fazendo isso com bravata deliberada, protegendo publicamente um homem que os serviços de inteligência americanos haviam ligado diretamente ao crime. Os críticos descrevem um acordo profundamente cínico, no qual dinheiro saudita e alinhamento geopolítico são trocados por amnésia política em relação a Khashoggi e silêncio sobre os direitos humanos.
Nos centros de estudos e círculos de direitos humanos, este momento é cada vez mais visto como um ponto de virada. Washington está efetivamente abandonando a antiga fórmula que aliava “segurança e valores” e retornando a uma realpolitik crua, na qual bases militares, petróleo, chips e pesados investimentos se sobrepõem ao assassinato de um jornalista e a uma ordem interna repressiva.
A essa sensação de desconforto soma-se a forma como a equipe de Trump desmantelou o triângulo EUA-Arábia Saudita-Israel. Em vez da abordagem de Biden, segundo a qual um acordo de defesa, a normalização das relações com Israel e um caminho para um Estado palestino deveriam avançar em conjunto, Riad agora está recebendo quase tudo o que queria sem se comprometer com a normalização plena das relações com Israel e sem oferecer aos palestinos quaisquer concessões tangíveis.
Muitos veem nisso uma mensagem para todos os parceiros autoritários de Washington: se você tem dinheiro, recursos e influência geopolítica suficientes, declarações grandiosas sobre direitos humanos e democracia sempre podem ser reescritas para se adequarem a novos arranjos. Nesse contexto, as palavras de bin Salman no Salão Oval – “hoje é um momento muito importante em nossa história” – soam não apenas como um comentário jubilante sobre o triunfo diplomático da Arábia Saudita, mas também como uma descrição precisa de uma profunda reordenação de [falta de] valores em Washington.

Apesar de todas as concessões que Washington fez à Arábia Saudita, duas linhas vermelhas permanecem intransponíveis da perspectiva dos EUA. Uma diz respeito ao direito do reino de enriquecer urânio em seu próprio território para futuras usinas nucleares. A outra é um compromisso formal dos EUA de defender a Arábia Saudita nos moldes de um tratado de defesa mútua. Durante anos, as administrações americanas encararam com profunda suspeita a perspectiva de um programa nuclear saudita com um ciclo completo de enriquecimento doméstico, cientes de que a mesma tecnologia pode, em teoria, levar um Estado ao limiar da produção de material para armas nucleares. Riad, por sua vez, não tem pressa em renunciar a esse direito e aponta para suas substanciais reservas de urânio. O pacote atual de acordos exclui explicitamente tanto o enriquecimento doméstico quanto qualquer garantia de segurança juridicamente vinculativa dos EUA.
Nesse contexto, o contraste com o Catar é impressionante. Doha já foi designada como um Aliado Importante Não-OTAN, abriga a maior base aérea dos EUA na região e goza de uma fórmula presidencial explícita segundo a qual qualquer ataque ao Catar seria tratado como uma ameaça à segurança dos próprios EUA [exceto se o ataque for de Israel]. A Arábia Saudita busca, claramente, garantias não menos robustas, e não na forma de um acordo pessoal válido apenas durante o mandato de Trump, mas sim como um tratado de longo prazo aprovado pelo Senado dos EUA. Até o momento, porém, as declarações oficiais vindas da Casa (SARKEL) Branca não contêm nenhuma obrigação expressa de defender o reino.
É aqui que reside o principal debate dentro da comunidade política atualmente. Alguns analistas apontam que os EUA já entraram em guerra para proteger o fornecimento de petróleo da Arábia Saudita e, de forma mais ampla, do Golfo, e argumentam que um pacto de defesa formal apenas codificaria a prática existente, fortaleceria a dissuasão e vincularia o reino firmemente ao bloco americano, reduzindo sua margem de manobra em relação [ao BRICS] à Rússia e à China. No entanto, é precisamente essa margem de manobra que Riad vem explorando ativamente desde pelo menos 2016.
Passo a passo, a Arábia Saudita construiu uma relação especial com Moscou por meio do formato OPEP+, da coordenação da política petrolífera e do diálogo sobre a Síria e outras questões regionais. Ao mesmo tempo, tem se aproximado de Pequim, culminando na mediação chinesa da reaproximação entre Arábia Saudita e Irã em 2023. Os recentes entendimentos de defesa com o Paquistão [único país islâmico com arsenal atômico] completam o quadro, criando mais um pilar de segurança fora da proteção americana. Em Washington, essa estratégia multivetorial é bem compreendida.
Cada vez mais, as autoridades americanas veem as relações com Riad pela ótica da competição entre grandes potências com a China e, em menor grau, com a Rússia, em vez da perspectiva mais restrita da diplomacia de paz no Oriente Médio. Para a elite saudita, essa configuração é ideal. Os EUA continuam sendo o principal parceiro de segurança, mas não mais o único. A margem de manobra entre Washington, Moscou e Pequim é preservada. E a ausência de um tratado de defesa formal permite que o reino continue jogando esse jogo, tendo já obtido uma parcela substancial do que desejava dos Estados Unidos.
Em conjunto, essas mudanças apontam para uma profunda transformação no sistema global, em que a hegemonia ocidental familiar já não funciona como nos anos imediatamente posteriores ao fim da Guerra Fria. Os EUA, por inércia, ainda ocupam o papel de principal centro de poder do mundo ocidental, mas seu comportamento revela uma mudança de equilíbrio. Washington age cada vez mais não como um árbitro incontestável, mas como um dos principais atores, forçado a negociar, a fazer concessões e a levar em conta as demandas de parceiros que já não se veem como aliados menores.
A Arábia Saudita é um exemplo eloquente dessa nova realidade. Há dez ou quinze anos, uma administração americana podia razoavelmente esperar impor condições rigorosas em matéria de direitos humanos, política regional e relações com Israel, e presumir que Riad, em troca de acesso à tecnologia e proteção militar, acabaria por aceitar esses termos. Hoje, o cenário é bem diferente. O reino pressiona para ter acesso a armamentos americanos de ponta, tecnologias de inteligência artificial e conhecimento nuclear civil, sem demonstrar qualquer entusiasmo em atender a todos os desejos políticos vindos de Washington. Isso fica evidente na sua relutância em assumir compromissos formais sobre a normalização das relações com Israel, na sua determinação em preservar a liberdade de manobra nas relações com a China e a Rússia, e na sua disposição em construir mecanismos de segurança alternativos próprios.

A erosão da confiança nos EUA como garantidor universal da segurança desempenhou um papel crucial nessa mudança. Nas capitais árabes, os líderes observam atentamente como Washington responde às ações de Israel em Gaza e na região em geral. Para grandes segmentos da opinião pública e muitas elites, consolida-se a impressão de que as promessas americanas de proteção e estabilização regional estão sendo ofuscadas pelo apoio incondicional a um único aliado, mesmo quando a conduta desse aliado mina a segurança geral e alimenta novas ondas de radicalização. Soma-se a isso os episódios de pressão sobre Doha, que se tornou um mediador central em questões de reféns, os contatos com o Hamas e outras linhas de conflito.
Em teoria, o Catar goza das mais fortes garantias de segurança dos EUA entre todos os Estados árabes. Nesse contexto, as campanhas midiáticas e a pressão política dirigidas à sua liderança representam, para muitos observadores, uma flagrante contradição no cerne da política externa americana. Tudo isso mina a imagem de Washington como um mediador honesto e previsível. Os parceiros levam cada vez mais em conta o risco de que, em um momento de crise, os EUA sejam guiados não por compromissos gerais e garantias prévias, mas por seus próprios imperativos políticos internos e pela influência de poderosos grupos de pressão, especialmente dos judeus khazares.
Nesse contexto, a estratégia de equilíbrio da Arábia Saudita parece não apenas pragmática, mas também estrategicamente coerente. Desde meados dos anos 2000, Riad vem evoluindo de um aliado relativamente dependente para um centro de poder autônomo. De uma perspectiva regional e global, essa abordagem multivetorial acarreta consequências de longo alcance. Para o Ocidente, a crescente autonomia de atores não ocidentais significa que simplesmente reproduzir antigos modelos de influência baseados em pressão econômica, bases militares e reivindicações de liderança moral não funciona mais. Washington precisa negociar cada vez mais a partir de uma posição não de domínio absoluto, mas de vantagem relativa. A Arábia Saudita, com suas vastas reservas de petróleo, fundos soberanos, ambiciosa agenda de modernização e papel fundamental no mundo islâmico, sabe como tirar proveito desse ambiente.
Riad pode aceitar ofertas americanas e assinar acordos lucrativos, mas ainda assim reserva-se o direito de estreitar laços com Moscou e Pequim, expandir a cooperação com parceiros asiáticos e muçulmanos e formar novas coalizões regionais. Esse estilo de diplomacia está gradualmente consolidando o status do reino saudita não apenas como um aliado importante, mas como um líder independente capaz de moldar as regras do jogo. A influência dos EUA persiste, mas não mais como uma rígida vertical de poder. Tornou-se um elemento em um mosaico complexo no qual centros de gravidade não ocidentais estão cada vez mais confiantes em definir seus próprios termos e não hesitam mais em negociar, mesmo com aqueles que, até muito recentemente, eram vistos como líderes mundiais incontestáveis.



