Mohamed veio nos buscar no hotel, em Heliópolis, às 6h da manhã, quando ainda estava meio escuro. Tomamos pequenas xícaras de café preto em uma barraca à beira da estrada e, em seguida, partimos para oeste, ao longo de estradas de terra ainda quase desertas, na direção do rio Nilo. Pedi a Mohamed que passasse pela praça Maydan al-Massalah, dominada por um obelisco egípcio intacto que é um dos mais antigos do mundo. Pesando estimadas 170 toneladas, o obelisco de granito vermelho, de 51m de altura, foi mandado construir pelo faraó Senuseret I [Sesóstris I] (nos anos 1971-1928 a.C.) Originariamente, era parte de um par de obeliscos à porta do grande Templo do Sol, onde havia um culto a esse astro.
Por Graham Hancock, livro “AS DIGITAIS DOS DEUSES”, Tradução de Ruy Jungmann, editora Record 2001.
CAPÍTULO 41 – A Cidade do Sol, a Câmara do Chacal: Nos 4.000 anos transcorridos, o próprio templo desaparecera por completo, como também o segundo obelisco. Na verdade, quase toda a antiga Heliópolis estava nesse momento obliterada, canibalizada para obtenção de suas belas pedras trabalhadas e de material de construção, pronto para uso, por incontáveis gerações de moradores do Cairo.
Heliópolis (Cidade do Sol) mencionada na Bíblia como On, fora originariamente conhecida na língua egípcia como Innu, ou Innu Mehret – que significa “o pilar” ou “o pilar norte”. Trata-se de uma zona de grande santidade, ligada a um estranho grupo de nove divindades solares e estelares e já era antiqüíssima quando Senuseret escolheu aquele local para mandar erigir seu obelisco. Na verdade, juntamente com Gizé (e a distante cidade meridional de Abidos) acredita-se que Innu/Heliópolis havia sido parte da primeira massa de terra a emergir das águas primevas no momento da criação, a terra dos “Primeiros Tempos”, onde “os deuses” tinham iniciado seu reinado na terra.
A teologia de Heliópolis baseava-se em um mito de criação caracterizado por certo número de aspectos únicos e curiosos. Ensinava ele que, no início, o universo era apenas um nada escuro, aquoso, denominado Nun. Nesse oceano cósmico inerte (descrito como “informe, escuro com a escuridão da noite mais escura”) surgiu um monte de terra seca, sobre o qual Rá, o Deus-Sol, materializou-se em sua forma auto-criada como Atum (às vezes descrito como um velho barbado, apoiado em um cajado):
O céu não havia sido criado, a terra não havia sido criada, os filhos da terra e os répteis não haviam sido formados naquele lugar… Eu, Atum, criei a mim mesmo… Não existia ninguém para trabalhar comigo…
Consciente de estar sozinho, esse ser santo e imortal deu um jeito de criar dois filhos divinos, Shu, o deus do ar e da secura, e Tefnut, a deusa da umidade {os dois PRIMEIROS princípios, positivo (masculino) e Negativo (feminino) necessários para se iniciar a CRIAÇÃO}:
“Enfiei meu falo em minha mão fechada. Fiz minha semente entrar em minha mão. Coloquei-a em minha própria boca. Evacuei sob a forma de Shu e urinei sob a forma de Tefnut”.
A despeito dessas origens aparentemente inauspiciosas, Shu e Tefnut (sempre descritos como “Gêmeos” [portanto IRMÃOS] e freqüentemente representados como leões) cresceram e se tornaram adultos, copularam e geraram uma prole própria: Geb, o deus da terra, e Nut, a deusa do céu. Estes dois coabitaram também, gerando Osíris e Ísis, Set e Nepthys e, dessa maneira, completaram a Enéade, o grupo completo dos Nove Deuses de Heliópolis. Entre os nove, diziam as lendas que Rá, Shu, Geb e Osíris governaram o Egito como reis, seguidos por Hórus e, finalmente durante 3.226 anos – pelo deus da sabedoria, Thoth, que tinha cabeça de íbis.
Quem eram esses SERES – criaturas, pessoas ou deuses? Teriam sido criações da “imaginação” de sacerdotes, símbolos ou números? As histórias contadas sobre eles teriam sido recordações míticas vívidas de fatos reais, que haviam ocorrido milhares de anos antes? Ou teriam sido, talvez, parte de uma mensagem codificada dos antigos, que fora se transmitindo por si mesma, repetidamente, ao longo das épocas – uma mensagem que só agora começa a ser desvendada e compreendida? Essas idéias parecem fantasiosas. Ainda assim, eu dificilmente podia esquecer que dessa mesma tradição surgira o grande mito de Ísis e Osíris, transmitindo secretamente um cálculo preciso da taxa do movimento da precessão dos equinócios. Além do mais, os sacerdotes de Innu, que tinham a responsabilidade de guardar e alimentar essas tradições, haviam sido famosos em todo o Egito por sua alta sabedoria e proficiência em profecia, astronomia, matemática, arquitetura e artes mágicas. E renomados também pela posse de um objeto poderoso e sagrado conhecido como o Benben.
Os egípcios davam a Heliópolis o nome de Innu, o pilar, porque a tradição dizia que o Benben havia sido conservado ali nos remotos tempos pré-dinásticos, onde se equilibrava sobre o alto de um pilar de pedra toscamente cortada. Acreditava-se que o Benben tinha caído dos céus. Infelizmente, havia se perdido há tanto tempo que ninguém se lembrava mais de sua aparência quando Senuseret subiu ao trono em 1971 a.C. Nesse período (12ª. Dinastia) tudo de que havia clara lembrança era que o Benben tivera forma piramidal, fornecendo dessa maneira (juntamente com o pilar onde se equilibrava) um protótipo para a forma de todos os obeliscos futuros. O nome Benben era também aplicado ao piramidião, ou capitel, geralmente colocado no cume, no topo das pirâmides. Em sentido simbólico, estava também estreita e diretamente associado a Rá-Atum, sobre o qual diziam textos antigos:
“Vieste alto das alturas; subiste alto, como a pedra Benben na Mansão da Fênix…”
A Mansão da Fênix era o nome do primeiro templo de Heliópolis onde o Benben fora conservado. O nome refletia o fato de que o misterioso objeto tinha servido também como duradouro símbolo da mítica Fênix, a divina ave Bennu, cujos surgimentos e desaparecimentos, segundo se acreditava, estavam ligados a violentos ciclos cósmicos e à destruição e renascimento das eras no mundo.
Ligações e Similaridades
Rodando pelos subúrbios de Heliópolis por volta de 6h30m da manhã, fechei os olhos e tentei conjurar um quadro da paisagem, como deveria ter sido nos Primeiros Tempos míticos, depois que a Ilha da Criação – o primordial monte de Rá-Atum – surgira do dilúvio de Nun. Era tentador ver uma ligação entre essa imagística e tradições andinas que falam do deus civilizador Viracocha emergindo das águas do lago Titicaca, após um dilúvio que destruiu a terra.
Além do mais, havia a figura de Osíris para levar em conta – uma figura conspicuamente barbuda, tal como Viracocha e, também, Quetzalcoatl -, que era lembrado por ter abolido o canibalismo entre os egípcios, por lhes ter ensinado a agricultura e a criação de animais e lhes dado os rudimentos de artes tais como a escrita, a arquitetura e a música. Era difícil deixar de notar as similaridades entre as tradições do Velho e Novo Mundo, porém, mais difícil ainda, interpretá-las. Era possível que fossem apenas uma série de coincidências enganosas. Por outro lado, era também possível que pudessem revelar as impressões digitais de uma civilização global antiga e não identificada – impressões digitais que eram essencialmente as mesmas, quer aparecessem nos mitos da América Central, nos altos Andes, ou no Egito.
Os sacerdotes de Heliópolis, afinal de contas, haviam ensinado como acontecera a criação, mas quem lhes ensinara isso? Teria o mito surgido do nada ou seria mais provável que a doutrina que ensinavam, com todo seu simbolismo complexo, fosse produto de um longo refinamento de idéias religiosas? Se assim, quando e onde haviam surgido essas idéias? Abri os olhos e descobri que havíamos deixado Heliópolis para trás e que costurávamos nosso caminho através das ruas barulhentas e congestionadas do centro do Cairo. Chegamos à outra margem do Nilo, cruzando a ponte Seis de Outubro e, logo em seguida, entramos em Gizé.
Quinze minutos depois, passando pelo volume maciço da Grande Pirâmide à nossa direita, viramos para o sul e tomamos a estrada para o alto Egito, uma estrada que segue o curso meridional do rio mais longo do mundo, através de uma paisagem de palmeiras e campos verdes, orlada pelas terras áridas invasoras de desertos implacáveis. As idéias dos sacerdotes de Heliópolis haviam influenciado todos os aspectos da vida secular e religiosa do antigo Egito, mas teriam essas idéias se desenvolvido localmente ou haviam sido introduzidas no Vale do Nilo procedentes de outras paragens? As tradições egípcias fornecem uma resposta inequívoca a perguntas como essas. Toda sabedoria de Heliópolis era uma herança, dizia ela, e essa herança fora passada à humanidade pelos deuses.
Dádiva dos Deuses?
Cerca de 15km ao sul da Grande Pirâmide, saímos da estrada principal para visitar a necrópole de Saqqara. Erguendo-se à margem do deserto, o sítio arqueológico é dominado por um zigurate em seis camadas, a pirâmide escalonada de Zóser, faraó da Terceira Dinastia. Esse monumento imponente, de quase 60m de altura, é datado como tendo sido de aproximadamente 2650 a.C. Situa-se no interior de um espaço próprio, cercado por uma elegante muralha fechada e é considerado por arqueólogos como a mais antiga construção maciça de pedra jamais tentada pela humanidade. Diz a tradição que teve como arquiteto o lendário sacerdote Imhotep, “Grande da Magia”, um alto sacerdote de Heliópolis cujos outros títulos incluíam Sábio, Feiticeiro, Astrônomo e Médico.
Em um capítulo posterior, teremos mais coisas a dizer sobre a pirâmide escalonada e seu construtor. Nesta ocasião, porém, eu não tinha vindo a Saqqara para vê-la. Meu único objetivo era passar alguns momentos na câmara funerária de uma pirâmide próxima, a de Unas, um faraó da Quinta Dinastia, que reinara de 2356 a 2323 a.C. As paredes dessa câmara, que eu visitara numerosas vezes antes, continham inscrições, do chão ao teto, com o mais antigo dos Textos da Pirâmide, um conjunto de inscrições hieroglíficas dando voz a um conjunto de idéias notáveis – em agudo contraste com os interiores mudos e despojados das pirâmides da Quarta Dinastia, em Gizé.
Fenômeno exclusivo da Quinta e Sexta Dinastias (2465-2151 a.C.), os Textos da Pirâmide são escrituras sagradas, parte das quais pensa-se que foi escrita por sacerdotes de Heliópolis no terceiro milênio a.C., e partes que eles teriam recebido de tempos pré-dinásticos e que passaram aos pósteros. E eram essas partes dos Textos, datando de uma antiguidade remota e impenetrável, que haviam me despertado a maior curiosidade quando começara a pesquisá-los alguns meses antes. Eu havia também achado divertida – e um pouco difícil de entender – a maneira como parecia que arqueólogos franceses do século XIX tinham sido quase que dirigidos para a câmara oculta dos Textos da Pirâmide por um mitológico “desbravador de caminhos”. De acordo com relatos razoavelmente bem documentados, um capataz egípcio de escavações que vinham sendo feitas em Saqqara, acordou e levantou-se certa manhã e, quando deu por si, estava junto de uma pirâmide arruinada, olhando para os brilhantes olhos cor de âmbar de um chacal do deserto:
Era como se o animal estivesse escarnecendo de seu observador humano… e convidando o confuso indivíduo a caçá-lo. Lentamente, o chacal dirigiu-se para a face norte da pirâmide, parando por um momento antes de desaparecer em um buraco. O confuso árabe resolveu seguir a indicação. Após esgueirar-se pelo apertado buraco, descobriu que estava rastejando para as escuras entranhas da pirâmide. Logo em seguida, emergiu no interior de uma câmara e,
erguendo uma luz, viu que as paredes estavam cobertas de cima a baixo de inscrições hieroglíficas, que haviam sido cortadas com refinada arte artesanal na pedra calcária sólida e pintadas em turquesa e dourado.
Hoje, a câmara forrada de hieróglifos no interior da pirâmide arruinada de Unas é ainda alcançada através da face norte e da longa passagem em declive escavada pela equipe francesa, logo depois da surpreendente descoberta do capataz. A câmara consiste de duas salas retangulares separadas por uma divisória, na qual há uma porta baixa. Ambas as salas são cobertas por um teto em cumeeira, pintado com uma miríade de estrelas. Emergindo encurvado pela passagem apertada, Santha e eu entramos na primeira das duas salas e cruzamos a porta de ligação para a segunda. Esta era a câmara da tumba propriamente dita, com o maciço sarcófago de granito negro de Unas na extremidade oeste e os estranhos pronunciamentos dos Textos da Pirâmide fazendo-se ouvir em todas as paredes.
Falando-nos diretamente (e não através de enigmas e fórmulas mágicas matemáticas, como as paredes despojadas da Grande Pirâmide), o que era que diziam esses hieróglifos? Eu sabia que a resposta depende, até certo ponto, da tradução que usamos, principalmente porque a linguagem dos Textos da Pirâmide contém tantas formas arcaicas e tantas alusões mitológicas estranhas que os estudiosos foram obrigados a preencher com palpites os claros em seus conhecimentos.
Não obstante, aceita-se em geral que o falecido R.O. Faulkner, professor de língua egípcia antiga do University College, de Londres, produziu a versão mais autorizada. Faulkner, cuja tradução estudei linha após linha, descreveu os textos como constituindo “o mais antigo corpus de literatura religiosa e funerária egípcia ora existente”, e acrescentou que “formam a menos corrompida de todas essas coletâneas e revestem-se de importância fundamental para o estudante da religião egípcia (…)”. A razão porque os textos são tão importantes (como concordam numerosos estudiosos) é que constituem o último canal inteiramente aberto, ligando o período relativamente curto do passado de que a humanidade se recorda, com o período muito mais longo que foi esquecido:
“Eles nos desvendam vagamente um mundo desaparecido de pensamento e fala, o último de eras incontáveis, através das quais o homem pré-histórico passou, até que, finalmente, (…) ingressou na era histórica”.
É difícil discordar de sentimentos como os seguintes: os textos revelam, de fato, um mundo desaparecido. Mas o que me intrigava mais a respeito desse mundo era a possibilidade de que pudesse ter sido habitado não só por selvagens primitivos (o que seria de esperar na pré-história remota), mas por homens e mulheres de mentes iluminadas por conhecimento científico do cosmo. O quadro geral, no entanto, era equívoco: havia elementos autenticamente primitivos nos Textos da Pirâmide, lado a lado com seqüências mais esclarecidas de idéias.
Não obstante, em todas as ocasiões em que eu me aprofundava naquilo que os “egiptólogos” chamam de “esses antigos sortilégios”, ficava impressionado com os estranhos vislumbres que eles pareciam dar de uma alta inteligência em ação, projetando-se de trás de níveis de incompreensão, relatando experiências que o “homem pré-histórico” jamais poderia ter tido e manifestando idéias que ele jamais teria podido formular.
Em suma, o efeito produzido pelos textos, através de hieróglifos, era semelhante ao efeito obtido pela Grande Pirâmide através da arquitetura. Em ambos os casos, a impressão dominante era de grande antiguidade – de processos tecnológicos avançados, usados ou descritos em um período na história humana em que supostamente não havia qualquer tipo de tecnologia…